• Percival Puggina
  • 04/04/2021
  • Compartilhe:

QUANDO ALGUÉM VIRA NINGUÉM

 

Percival Puggina

 

         As entrevistas iam longe e longas até que parei de ouvi-las. Corporativismos me causam fastio. Os falantes convidados eram contra a privatização da empresa estatal de saneamento do Rio Grande do Sul. Atacavam algo que consideravam absurdo: a PEC que pretende revogar a exigência de um plebiscito para venda de empresas estatais.

         No final do desastroso governo de Olívio Dutra, junho de 2002, a constituição estadual foi emendada para aprovar esse disparate. Já desenhada, então, a derrota do projeto petista nas urnas, a proposta garantindo a onerosa sobrevivência dessas empresas acrescentou mais um triste legado àqueles tempos. Agora, finalmente, tramita com possibilidade de aprovação uma PEC que revoga a anterior, abolindo o dispensável plebiscito.

         Independentemente das posições pessoais em relação a tais temas, no mínimo dois aspectos dos argumentos usados para impedir a aprovação da nova proposta ferem a razão: 1º) alegar, como alegavam os entrevistados, que uma PEC não pode revogar o direito de toda a sociedade ao plebiscito (embora esse plebiscito tenha sido imposto por outra PEC); 2º) não perceber que, na absurda situação atual, é possível criar uma estatal sem plebiscito, mas é exigido ouvir toda a sociedade para se desfazer dela.

         Temos, aqui, o fenômeno que denomino de patrimonialismo estendido. O patrimonialismo é o Estado sem limites entre o público e o privado (nós sabemos bem o que é isso e como se concentra nos últimos andares do poder). De algumas décadas para cá, notadamente de Vargas para cá, porém, o patrimonialismo se estendeu para amplos segmentos da sociedade através dos aparelhos de governo e de Estado, com a ascensão política do corporativismo. Patrimonialismo, e corporativismo no setor público, são a mesma coisa, pois ambos se nutrem de recursos públicos. São partes e órgãos de um mesmo corpo obeso, com sempre crescente voracidade, presença e extensão.

         Enquanto falavam, os entrevistados explicavam os mecanismos de pressão que vinham exercendo sobre os deputados estaduais para forçar a rejeição da PEC que dispensava os plebiscitos para alienação de estatais. Pressão pessoal, de natureza corporativa, política, sobre cada parlamentar, com o intuito de levá-lo a ponderar perdas eleitorais que viria a ter se a aprovasse. Tão adiantado andava esse trabalho que podiam antecipar sua rejeição...

         Pressão! Mas não é isso que, insistentemente venho recomendando que seja feito em relação aos nossos senadores e deputados federais quando em seus estados, em suas bases, em suas cidades de origem? Manifestações além das redes sociais! Manifestações tipo olho no olho, com cobrança de atitude, discursos e cartazes expondo argumentos, exigindo resposta às razões da razão. Evidências do querer nacional por mudanças no STF, por combate à impunidade e à criminalidade, por transparência e economia nos gastos do Congresso, nas verbas dos partidos e no custeio das eleições.

         O silêncio da sociedade é acalento, música de ninar nos ouvidos dos maus congressistas. Se o eleitor não vocaliza sua cobrança e suas discordâncias de modo individualizado, o congressista se oculta na massa dos 513 deputados federais, ou dos 81 senadores. Nesse “coletivo”, some o sujeito que precisa de voto no ano que vem. Ali, quem é alguém vira ninguém, sem rosto, nome e sobrenome, ninguém a quem se dirija a voz, o olhar e se aponte o dedo.

Isso não é difícil de entender, nem de fazer. Basta desistir de tentar o impossível.

Percival Puggina (76), membro da Academia Rio-Grandense de Letras e Cidadão de Porto Alegre, é arquiteto, empresário, escritor e titular do site Conservadores e Liberais (Puggina.org); colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil pelos maus brasileiros. Membro da ADCE. Integrante do grupo Pensar+.


José Gomes -   06/04/2021 00:57:06

Puggina, você mesmo tem um outro artigo, no qual discorre sobre o voto distrital. Este sim, daria ao eleitor a voz de fato para cobrar do deputado ou senador sobre suas ações como parlamentar. Contudo, não interessa a êsses parlamentares o estatuto do voto distrital. Ê n~çao entregariam de mão beijada uma arma poderosa dessa ao eleitor que inclusive poderia exigir a deseleição de deputados e senadores por meio de eleições de recall. É muito complicada essa situação, considerando-se o nível de desinteresse político da grande maioria da população brasileira. Quem sabe uma grande mobilização nacional, puxada por influenciadores do seu nível criasse uma vontade popular tão forte que os parlamentares se sentissem acuados e vissem saída diferente da adção do voto distrital puro e extensivo a todos os cargos políticos, exceto presidente da república. Sim, porque até governadores e prefeitos deveriam ser considerados deselegíveis. Assim o eleitor teria protagonismo de verdade.

Afonso Pires Faria -   05/04/2021 17:47:07

É quase desanimador termos que ver os rumos que as coisas estão tomando e pouco podermos fazer. Qualquer palavra lógica é tida pela imprensa, como insana.

Eduardo -   05/04/2021 15:41:11

Prezado Puggina, concordo contigo: olho no olho e corpo a corpo são indispensáveis e indiscutivelmente convencedores de políticos. Sinto-me em falta com isso e vou pensar no que fazer a respeito. Por outro lado, o sistema de representatividade eleitoral está posto, dentre outras razões impostas pelos partidos —feudos corporativistas—, para justamente coibir tal pessoalidade, ou seja, inviabilizar a cobrança direta e inequívoca de eleitos por seus próprios eleitores. Concordo, portanto, com o leitor Valter de Oliveira. Lembro-me aqui do jornalista Fernão Mesquita, herdeiro do "Estadão" (jornal “O Estado de S. Paulo”, atual "Esquerdão"), autor em www.vespeiro.com, que tem persistido há anos em três propostas político-eleitorais para eliminar o disparate da falta de representatividade legislativa do cidadão brasileiro. Com reservas a boa parte de suas opiniões, acredito que ele nos ajuda tanto no diagnóstico quanto no remédio desse disparate. Grato pelo teu artigo.

EDISON BECKER FILHO -   05/04/2021 15:12:38

Como a estratégia de manipulação evoluiu ao longo dos anos. Como paramos de perceber o que realmente é importante! Hoje o conceito democrático está muito mais vinculado ao interesse de poucos mas vendido como o interesse de todos. A triste constatação é que somente alguns lucram e a maioria perde. Ninguém parece dar importância a isto, pois o que prevalece são chavões. Sempre digo que a evolução humana está na forma como manipulam a sociedade. Cultura é fundamental! Não esta cultura que nos trata a todos como iguais dizendo que isto é democrático, pois isto retira o poder de SER único, um individuo com capacidade de pensar, refletir, criar, escolher seu caminho sem que seja direcionado, é lógico que dentro de padrões ditos aceitáveis para convivência coletiva. Lamentável como utilizam as desigualdades que sempre existirão como forma de manipulação e benefício de minorias. Continuamos como na época dos impérios mas utilizamos outras formas para mantermos nossa estrutura de domínio, poder e riqueza. Fazer o que!

LARRY DE CAMARGO VIANNA NASCIMENTO -   05/04/2021 12:55:44

O PETISMO É IGUAL CÂNCER. SE NÃO EXTIRPAR O CORPO MORRE.

Raul José Ferreira Dias -   05/04/2021 11:33:29

Meu estimado Mestre, Mais uma vez sorvo do seu conhecimento que é, mais uma vez, publicado com a excelência de sempre. O RS precisa, de uma vez por todas, livrar-se dos grilhões comunosocialistas. Receba um grande e fraterno abraço. Brigadeiro Dias

Carlos Edison Fernandes Domingues -   04/04/2021 21:53:34

PUGGINA Não podemos perder a disposição de participar. Ontem, para reanimar um amigo que me visitava, fui buscar e transmitir o ensinamento bíblico, onde as árvores buscavam eleger um rei. A oliveira, a figueira e a videira negaram-se, para não comprometer o nobre desempenho de cada uma delas. Sobrou para o espinheiro "abrigai-vos à minha sombra" (Juízes 9, 8-15) Meu pai me ensinou que "a ausência dos bons é mais perniciosa que a presença dos maus" A hipertrofia do estado e, consequente, corporativismo é o fruto amargo do "espinheiro" Carlos Edison Domingues

valter de oliveira -   04/04/2021 15:42:01

Caro Puggina. A questão é que o sistema proporcional não ajuda: prejudica. E muito. Tenho que pressionar 70 deputados que, com razão, vão desconfiar que não votei neles. Tenho contato com dois que, em geral, atuam bem. Já os demais... Grande abraço. Vamos encontrar novos meios de pressionar.