Percival Puggina

17/09/2023

 

Percival Puggina

            Tomou-me tempo, escrever este artigo. Quando o dei por pronto, encarei, olho no olho, cada adjetivo. Passei a peneira nos superlativos e diminutivos. Não satisfeito, me debrucei sobre os advérbios (às vezes, eles encerram verdades que ferem vaidades). Por fim, chequei os fatos e as interpretações dos fatos, etapa após a qual fiquei tentado a voltar atrás e repor os adjetivos suprimidos... Resisti. Ei-lo aqui, pronto para os leitores, a quem digo concordar em quase tudo com os advogados e em quase nada com os ministros que aprovaram aquelas desmesuradas penas.

Faço tal afirmação apesar de não ter formação jurídica, por ser perfeitamente capaz, assistindo cena de vida real ao longo de dois dias, por horas a fio, como fiz durante o julgamento, de identificar objetivos, estratégias e sentimentos que os protagonistas expressaram. Assim também, sei que o parágrafo inicial deste artigo, logo aí acima, fala de autocensura. Ela é consequência da censura e das interdições, bem como de excessos que não estiveram ausentes do “espetáculo judiciário” dos dias 13 e 14.

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Após a IIª Grande Guerra, o Tribunal de Nuremberg iniciou seus julgamentos em novembro de 1945 e os encerrou em outubro de 1946, apreciando 185 casos, tendo absolvido os réus em 35 deles. Na URSS, em especial nos anos de 1936 a 1938, foram promovidos inúmeros julgamentos públicos da elite política. Os réus também eram classificados em pacotes: o dos “mentores” (a elite original do comunismo soviético), dos “infiltrados” na burocracia do regime e dos “propagadores” de ideias antirrevolucionárias no meio da população. Stalin espetacularizava esses julgamentos como forma de impor a ética revolucionária à sociedade soviética. O STF, por sua vez, tem mil e tantos processos para julgar, tendo condenado até agora os três primeiros réus.

É bastante evidente que estes julgamentos iniciais cumprem uma finalidade semelhante à dos grandes julgamentos da história política. São eles: 1º) consolidar uma compreensão política da atualidade nacional segundo a perspectiva majoritária da corte; 2º) exibir seus argumentos e difundir os adjetivos que a Corte aplica à conduta dos réus; 3º) explicar que os presos estão sendo julgados ali por conexão, nos mesmos inquéritos, com réus que têm foro privilegiado; 4º) explicar a visão da folgada maioria da Corte sobre o que ela chama de “amplo cenário” e “crimes multitudinários”, redundando no arrolamento dos réus nos mesmos crimes, independentemente do que cada um estivesse a fazer no local dos fatos.

No entanto, o tal “cenário completo” reiteradamente mencionado, mas muito especialmente enfatizado pelos ministros Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, é uma – apenas uma e convenientemente escolhida – das visões políticas que se pode ter dos acontecimentos. Existem outros cenários, todos mais amplos, nos quais o próprio Tribunal é parte ativa. Aliás, ativista, tendo contribuído para a formação de um ambiente psicossocial muito negativo, muito tóxico, no país. Estou falando de bem mais de uma centena de decisões contra o governo anterior envolvendo, inclusive, teses sem acolhida no parlamento e deferidas pelo STF a pedido de legendas sem representatividade alguma. Nada demarca tais intervenções melhor do que o veto à nomeação de pessoa indicada por Bolsonaro para a Direção-Geral da PF. Somem-se, ainda, as ações junto às redes sociais e seus usuários, as manifestações políticas dos ministros e o tom em que muitas foram proferidas, as invasões de competência, os inquéritos sem fim e por aí vai, como exemplo de cenário mais amplo.

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Assim como percebo tudo isso, também percebi, desde sempre, a impropriedade e a inexequibilidade da intervenção militar, bem como a estupidez do ato convocatório para concentração em Brasília. Indignou-me instantaneamente a destruição que se seguiu. Como pode alguém ser assim tão burro, fazendo imenso mal a si mesmo e grande bem a seu adversário em poucas horas? Num outro viés, intrigam-me ainda hoje o abandono da praça pelas forças do Estado, as imagens que vejo, as imagens que vazam, as imagens que somem e a conduta dos parlamentares da base do governo na CPMI.

Não é difícil compreender que alguns advogados tenham transposto certos limites que desconheço porque pouco sei do linguajar forense, mas há a esse respeito considerações indispensáveis: 1ª) nenhuma agência de publicidade convidaria o ministro relator para lançar uma campanha contra discurso de “ódio”; 2ª) os advogados já sabiam o que iria advir para seus clientes porque as questões levantadas pelo Dr. Sebastião foram negadas quase unanimemente pelo plenário; 3ª) os réus eram culpados em amplo espectro por tudo que coubesse no tal “cenário” escolhido, mesmo que tivessem ficado sentados num banco; 4ª) o trem dos prisioneiros já partira rumo a seu destino; 5ª) não é difícil entender que os dois últimos defensores expressassem a emoção que tantos estavam a sentir naquele momento; 6ª) a emoção não era suprimível do espetáculo; 7ª) de algum lugar precisavam emergir sentimentos humanos; 8ª) era a homenagem às vítimas de um excesso monumental, cujas penas a si aplicadas não eram absorvidas no crime maior e superavam a máxima prevista no Código Penal para crime de estupro; 9ª) é impiedoso reprovar a emoção alheia, especialmente a emoção de uma alma feminina.

Os momentos de irresignação, comoção e lágrimas foram os traços visíveis de humanidade no espetáculo judiciário dos dias 13 e 14.

Percival Puggina (78) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país.. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+. Membro da Academia Rio-Grandense de Letras.

 

 

 

 

 

 

 

 

Percival Puggina

14/09/2023

 

Percival Puggina

        

         Outro dia, dei-me conta de que um novo mal havia acometido o país e que eu apresentava, por vezes, sintomas desse mal. Refiro-me à “lacração” como peça do debate político.

A lacração não é uma síntese, um concentrado de sabedoria. Ela é um diminutivo da Razão, que ganha R maiúsculo, estatura necessária e cumpre papel importante na formação de ideias quando, no conteúdo e na forma, se expressa apta e consistente para o natural contraditório.

Por conta desse vício, as ideias ganham o tamanho da frase com que se apresentam. Forma-se o hábito da brevidade. Do textão para o textinho e do textinho para a frase lacradora que em segundos de leitura arranca um sorriso ou uma gargalhada. Nesses poucos segundos, de algum modo, o debate político se atrofia.

A lacração é parente muito próxima da maledicência, que é outro vírus que infesta o ambiente nacional, tendo seus principais hospedeiros na comunicação social e no mundo político. Desqualificar o adversário tornou-se o dever número 1 de quaisquer antagonismos como forma de vencer sem ter razão.

Esse é um terreno perigoso, moralmente desastroso se a epidemia se alastra e toma conta do ambiente acadêmico e cultural, porque a pessoa humana é um ser em construção. Ela deveria buscar, pelo exercício da liberdade, a perfeição de sua natureza. Quando negligenciado esse dever, com o abandono da leitura de bons autores, porque uma tuitada é a coroa da verdade que se quer apresentar, há uma perda individual com consequências sociais.

Deus nos fez dotados de inteligência que nos permite conhecer o bem, de liberdade que nos possibilita escolher o bem, e de vontade para resistir a tudo que nos pode afastar do bem. Sim, caros leitores, a palavra vontade tanto designa aquilo que queremos quanto significa a força para renunciar ao que queremos para fazer aquilo que devemos. Comumente chamamos a isso de força de vontade. Muito embora a primeira regra moral afirme que devemos evitar o mal e buscar o bem, quem evita o mal está cumprindo a metade mais neutra e mais comum da regra. Difícil é fazer o bem; e mais difícil, ainda, é fazer todo o bem que se possa. Na vida pública, isso é especialmente significativo. Ali, não fazer o mal – tarefa dos medíocres, segundo José Ingenieros – já é difícil. Fazer o bem é a missão de estadistas, dos quais estamos tão carentes! Os que temos, por poucos que são, não atendem a demanda nacional.

Por isso, me desgosta vê-los, tantas vezes, perdidos em lacrações que valem tanto quanto duram. A vitória dos conservadores e dos liberais só terá a extensão necessária se as respectivas ideias e as correspondentes ações alcançarem com clareza os corações e as mentes que andam por aí, vazias por falta de quem lhes proporcione bons conteúdos.

Percival Puggina (78) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país.. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+. Membro da Academia Rio-Grandense de Letras.

 

Percival Puggina

13/09/2023

 

Percival Puggina

 

Essa imensa e onerosa máquina ministerial vai gastar o ano retrocedendo em avanços realizados no quadriênio anterior? Aos nove meses, no final de setembro, virá à luz algo parecido com um plano de governo que não seja a sua própria conveniência?

Governar é tarefa complexa, que vai além da distribuição de dinheiro em alguns pacotes, associada à busca de novas formas de sangrar o pagador de impostos. Governar não é, tampouco, viajar pelo mundo em faustosas jornadas turísticas que só têm servido para tostar ainda mais a reputação, arrastando junto a imagem de um país novamente transformado em destino de criminosos e párias internacionais. Zero surpresa.

Se o governo ainda não apresentou seu lado positivo, embora já tenha dado muitas voltas em torno de si mesmo, a estratégia está bem conhecida. A Constituição de 1988, prolixa e minuciosa, agravou vícios institucionais que se arrastam desde a proclamação da República. Insano, mas real: hoje, governar exige, sempre, emendar a Constituição, tarefa para a qual se requerem 3/5 dos votos das duas casas legislativas. Boa parte desses totais precisam ser adquiridos a preços nada módicos que sobem em alta temporada. O governo pode, é claro, obter algum desconto se tiver “milhas” acumuladas com o partido ou com o parlamentar, mediante indicações para cargos, convites para viagens ou prestação de serviços diversos.   

Nem sempre esses bônus de desempenho são suficientes, mormente se a matéria de iniciativa do governo atacar princípios e valores de apreço da sociedade. Vem então o plano B: o governo apela, direta ou indiretamente, à sua sólida e infatigável bancada no Supremo Tribunal Federal. Ela é pequena, mas unida e manda pacas.

Para substituir-se ao parlamento, o STF precisa, por sua vez, contar com a tolerância das duas casas do Congresso Nacional, que dão sinais de se sentirem sumamente honradas quando o trator judiciário lhes passa por cima. Dado que há bom tempo o sinal congelou no verde, o Supremo vai adiante atropelando a vontade da ampla maioria da população, estabelecendo normas e criando penas segundo as pautas esquerdistas: drogas, imposto sindical, ideologia de gênero, terras indígenas, e por aí segue (aborto já está liberado para ir a plenário!).  

Tais deliberações representam a vontade da ampla maioria dos cidadãos? Concedemos mandato para isso a alguma autoridade togada? Descrevo, pois, a violação da cidadania.

O resultado dessa duplicidade legislativa é o colapso da democracia na forma do preceito constitucional que determina o exercício da soberania popular mediante a representação parlamentar. Se as casas do Congresso abdicaram de suas funções, parcial ou totalmente, que entreguem as cadeiras e fechem cuidadosamente as portas.   

Percival Puggina (78) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país.. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+. Membro da Academia Rio-Grandense de Letras.

Percival Puggina

12/09/2023

 

Percival Puggina

        O jornalista Alexandre Garcia é um clássico do jornalismo brasileiro. Não é uma voz sensacionalista nem faz a notícia maior do que o fato. Milhões de brasileiros o distinguem com a percepção de ser um dos raros, raríssimos, pedagogos nacionais sobre a história estudada e a história vivida. Nesse e em muitos outros sentidos, é um sinal de contradição em relação aos males que acometeram nosso periodismo com a enxurrada de militantes despejados nas redações por nossos aparelhos universitários.

Gaúcho como eu, Alexandre Garcia recebeu informações locais sobre a catástrofe ocorrida no Rio Grande do Sul na semana passada. Tem familiares em Taquari, cidade que periodicamente visita, situada à margem do rio de mesmo nome e principal cenário do sinuoso e arrasador percurso daquela onda de cheia. Nunca antes ocorrera algo semelhante.

Sei disso por experiência própria. No início da minha vida profissional como arquiteto, nos anos 70, trabalhei no projeto de um entroncamento multimodal localizado na cidade de Estrela. O local foi escolhido por ser o mais elevado da margem do Taquari, junto à rodovia e à ferrovia. Mesmo assim, estava praticamente no nível da cheia máxima da região, ocorrida no ano de 1941 e nunca mais reproduzida ao longo do meio século que se seguiu à implantação do projeto.

Era natural, portanto, que as comunidades buscassem explicações para o fenômeno da semana passada e que os olhos se voltassem para as três barragens. Elas eram os fatos novos na hidrologia da região. Prefeitos das cidades devastadas mencionaram a possibilidade. A suspeita circulou intensamente nas redes sociais. Alexandre Garcia referiu o fato num comentário durante o programa Sem Filtro.

Leio hoje em O Globo, naquele estilo sibilino que conduz o leitor para fora do fato que noticia, matéria com o seguinte título: “Lula repete Bolsonaro e usa AGU e Ministério da Justiça contra jornalista”. Ou seja, Lula fez algo que não se faz, mas repetiu Bolsonaro porque este também teria feito coisa semelhante. A matéria tem 1134 palavras; 395 se referem à ação do governo Lula contra o jornalista e 739 se referem ao governo anterior...

A própria matéria transcreve entre aspas o que Alexandre Garcia disse, dando causa ao corre-corre do lulismo ensandecido:  "no governo petista foram construídas, ao contrário do que recomendavam as medições ambientais, três represas pequenas, que aparentemente abriram as comportas ao mesmo tempo. Isso causou uma enxurrada". Ou seja, uma reprodução do que era voz corrente no Rio Grande do Sul, acrescido do cuidadoso advérbio de modo: “aparentemente”. Era o que parecia, que dava para pensar diante de algo tão inusitado.

Constranger e impor silêncio à divergência já não é mais novidade no Brasil. Novidade continua sendo a resistência de uns poucos aos meios pelos quais se constrange e restringe a liberdade de expressão no Brasil.

Percival Puggina (78) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país.. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+. Membro da Academia Rio-Grandense de Letras.

 

Percival Puggina

11/09/2023

 

Percival Puggina

        

      Em meu primeiro emprego, recém-graduado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRGS, tive que redigir proposta técnica para um determinado projeto com impacto urbano. Pouco depois de entregar o trabalho, o diretor, um engenheiro experiente, me chamou para conversar e me disse: “Você escreve muito bem, mas trabalhos técnicos não comportam adjetivação. Retire os adjetivos e retorne”. Aprendi a lição e durante quase duas décadas nenhum texto saiu do escritório sem passar por mim.

Lembrei-me dela ao ler trechos da decisão com que o ministro Dias Toffoli anulou, monocraticamente, o acordo de leniência (delação premiada) da Odebrecht. A abundância dos adjetivos, as analogias e o tom de discurso político gritam sua incompatibilidade com o que a sociedade pode esperar de uma decisão judicial de tal gravidade. Palavras e expressões como conspiração, armação, conluio, ovo da serpente, pau de arara do século XXI cabem em certas colunas de O Globo ou da Folha, mas preocupam os cidadãos atentos, principalmente quando usadas por um ministro do Supremo para atribuir à Lava Jato o “objetivo de colocar um inocente como tendo cometido crimes jamais por ele praticados”.  Nem mesmo o ministro Fachin foi tão longe.

As pessoas com quem falo sobre nosso amado país expressam sentimentos semelhantes aos meus. Ora o Brasil parece um carro sem freio e ali adiante haverá uma catástrofe, ora parece descer a cada dia um degrau da escada sinistra do infortúnio. Na primeira situação, haverá um ponto final; na segunda, talvez não, porque sempre será possível piorar um pouco. Esta é a sensação mais frequente pois o noticiário de cada dia nos informa que, de fato, descemos ou desceremos mais um degrau do impensável destino. Algo de que não podíamos sequer cogitar aconteceu.

Tem sido tão vertiginosa a velocidade com que o país se deteriora que a memória dos acontecimentos some com a poeira que levantam, mas ao final de cada dia, no balanço dos fatos, vemos crescer o abismo entre a sociedade e o Estado.

A assim chamada tribuna de honra do desfile do dia 7 proporcionou imagem viva e colorida desse isolamento. Ali estava a “democracia” pela qual se empenharam com tanto ardor os ministros do STF e do TSE. Ali estavam estampadas as consequências do intenso trabalho das redações e de seus digitadores a soldo. Ali se concentravam os frutos omissão de uns e da intromissão de outros, da censura e do cerceamento à liberdade de expressão jurado desde 2019. Ali também estavam representados os contemplados pela anulação das provas dos crimes cometidos. E a cidadania, a lesada de sempre? Ausente, como vem sendo mantida, mas por vontade própria.

Dos males possíveis, o maior será aquele em que a nação facultar a si mesma o abandono à própria sorte.  Resistir sempre.

Percival Puggina (78) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país.. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+. Membro da Academia Rio-Grandense de Letras.

 

Percival Puggina

10/09/2023

 

Percival Puggina

         É natural que criminosos sejam representados por advogados para seu direito de defesa ser plenamente exercido. A lei e a razão o determinam. Por isso, o Estado fornece advocacia gratuita a quem não pode pagar e por isso, também, profissionais e escritórios, querendo, atendem necessitados de modo gratuito (pro bono) em contribuição à Justiça como valor social.

O que eu não consigo entender é a conduta dos padrinhos da bandidagem em tese e pro bono, através de literatura jurídica e dos meios de comunicação social. Aí é brabo! Não abraçam um bandido específico, mas protegem o coletivo, seja justificando a conduta criminosa, seja atacando os aparelhos policial e judiciário, vale dizer, aqueles que reprimem, investigam, acusam e julgam. Ensopam lenços retóricos ante um bandido morto e têm os distantes do policial cuja vida se esvaiu no cumprimento do dever.    

Nunca vi o sujeito indefinido de quem falam com tanto afeto. A cada crime cometido por celerados que jamais poderiam andar soltos, eles mencionam esse raríssimo personagem padrão. Discorrem sobre ele com a intimidade de quem certamente sabe o nome da sofrida mulher e dos infelizes, mas diletos filhos. Descrevem sua situação social, os empregos que perdeu por motivos fúteis, os maus tratos que a vida lhe impôs por culpa de todos que estejam uma polegada acima de seus padrões de existência. Apesar do abismo que separa esse sujeito dos bandidos que enchem as páginas policiais, os tais rábulas pro bono o oferecem ao imaginário nacional como sendo o criminoso de referência. Lula pensa assim.

 “Filho doente, sem emprego e sem dinheiro para os remédios, como buscar aquilo de que necessita?”, indagam como quem fala à dureza de corações empedernidos. Pois é, pode até ser que alguém tenha tido notícias, mas eu jamais soube de assalto cujo produto seja contado em vidros de antibiótico ou gramas de mortadela. O crime que enche os noticiários, que nos atormenta, é bem outro. Seus autores não vão em busca de uma necessidade premente. Querem dinheiro, sexo, automóveis, a conta bancária dos sequestrados, meios para comprar drogas. E, à menor contrariedade, atiram para matar.

Os dois sujeitos armados que me assaltaram tempos atrás não tinham jeito de quem iria correndo ao supermercado adquirir gêneros para seus ninhos de amor familiar. Pergunto: as feras que volta e meia declaram guerra à polícia, disparam contra as delegacias, queimam ônibus, atiram em mulheres grávidas, cometem chacinas seriam imagem viva desses chefes de família torturados ao limite de sua resistência moral pelas carências dos entes queridos? Qual dos bandidos cujas ações enchem as páginas policiais tem o perfil que os tais doutores, sem o refinamento de Mark Twain, descrevem como se fossem inspirados na vida de Huckleberry Finn?

Sei que o mais empedernido promotor e o mais insensível magistrado não encarcerariam um miserável cuja situação e delito correspondam a essa quase romanesca descrição. Os bandidos que a sociedade quer ver jogando o jogo da velha nos quadrinhos do xadrez são receptadores, quadrilheiros, sequestradores, traficantes, pedófilos, estupradores, estelionatários, assassinos, corruptores e seus fregueses instalados nos escritórios do poder.

Processar com rapidez, prender e manter presos os poucos que caem nas malhas da polícia e da justiça – digo eu antes que os tais rábulas retornem com seu mantra: não resolve o problema da criminalidade. Leram-me bem, senhores? Não resolve! Mas resolve o problema da criminalidade praticada por esses específicos bandidos. Já será um bom começo pagarem atrás dos muros o mal que fizeram. Enquanto isso, cuide-se, também, das outras muitas causas. Entre elas, aliás, a ideologização que, dando origem a essa ladainha sentimental, se constitui em bom estímulo à tolerância perante o crime e ao avanço da violência.

Ah, se os verdadeiros criminosos fossem vistos como no Brasil os olhos da justiça viram quem cantou hinos e rezou diante de quartel!

Percival Puggina (78) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país.. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+. Membro da Academia Rio-Grandense de Letras.

 

 

Percival Puggina

08/09/2023

 

Percival Puggina

        Ao longo do dia de ontem, abri duas exceções à sábia decisão de não mais assistir a alguns canais de televisão. Desconheço suas programações. A exceção consistiu em não mais de cinco minutos, somados os tempos perdidos diante da tela, vendo imagens mostradas em dois ou três desses veículos.

Em pensamento, exclamei: “Bem feito!”. Colheram o que plantaram, numa sinistra mistura para a qual uns contribuíram com arrogância, tirania, desprezo às leis da República, à sociedade e suas opiniões, enquanto outros aportavam doses maciças de submissão, omissão, cumplicidade e semeadura de ódio. Imagino o que ia nas mentes de ambas as vertentes que ali se amalgamavam, constrangidas, diante da silenciosa e gigantesca vaia nacional!

A quem era essa vaia dirigida? A quem? É pouco provável que alguém, ali, escapasse ao desdém expresso no silêncio federal, estadual e municipal daquelas horas.  

Os dias anteriores evidenciaram o zigue-zague das avaliações oficiais. Segundo a Gazeta do Povo, o ministro Flávio Dino alertou o governo do Distrito Federal para possíveis atos organizados pelas redes sociais e colocou a Força Pública à disposição. O governo federal constituiu um Gabinete de Mobilização Institucional e o governo do Distrito Federal afirmou que as corporações (Polícia Civil e Polícia Militar) estavam vigilantes contra eventuais ameaças. Pouco depois, as notícias eram de que o ambiente nacional estava tranquilo. Cemitérios são, sim, locais bastante tranquilos. O féretro da liberdade, também.

Há um provérbio que parece aplicável ao caso sobre a má experiência de certo gato com água quente, mas o felino da história não pôs a água para ferver.

O jornal O Globo, em acesso de lulismo, deixou de lado o xoxo evento de 2023 e atacou o do ano passado, Bolsonaro e suas aparentemente “injustificáveis” críticas a ministros do STF. À época, lembro bem, alguns ativíssimos protagonistas do ambiente político nacional – badalados pela Folha, pelo Estadão e pelo O Globo – haviam decidido que era pouco saudável emitir opinião negativa a seu respeito.

O 7 de setembro de 2023 tornou-se uma espécie de identificação facial, facilmente reconhecível, da triste “democracia” brasileira. Democracia entre aspas, sim, transformada em serventia dos donos do poder. Durante anos, parcela expressiva da sociedade brasileira gritou nas ruas e praças do Brasil para instituições cujas maiorias lhe viraram as costas. Muitos pagaram caríssimo pelo atrevimento de dissentir.

Silenciar neste 7 de setembro não é sinal de consentimento. Bem ao contrário, equivaleu a um ruidoso ato de resistência para quem o amor à Pátria cantou sofrido no silêncio do peito.

Percival Puggina (78) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país.. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+. Membro da Academia Rio-Grandense de Letras.

Percival Puggina

07/09/2023

 

Percival Puggina

         “Hoje é dia de concentração na praça", disse-me a senhora. "Começa às 17 horas, mas os policiais do presidente chegam antes e usam essa sacada para observação de segurança. Talvez o senhor se sinta melhor se retornar depois do fim do evento”. Prontamente respondi que sim. Preferi chegar depois, porque, no mínimo, teria que me identificar para poder permanecer e, se ficasse, certamente não poderia usar a sacada. 

Eu estava em Havana e tinha, nessa vez, alugado uma parte do apartamento de uma professora (quarto, banheiro e sala, enquanto ela usava a cozinha e uma outra dependência com acesso particular). O prédio estava muito bem localizado, junto à Praça da Tribuna Anti-imperialista, e o apartamento tinha a tal sacada a que se referia minha hospedeira. Professora de História, era pessoa de confiança do regime e, graças a isso tinha “permiso” para alugar o imóvel a turistas. Com a sala, deu-me acesso à sua biblioteca (pouco mais de um metro de livros em espanhol e em russo). Explica-se o conteúdo em russo pelo fato de se haver graduado em Moscou, na Universidade da Amizade dos Povos, conhecida como Patrice Lumumba.

Então, por volta das 16 horas, desci para a praça e assisti aos atos que se seguiram. Eles consistiram numa sequência de discursos voltados ao enaltecimento do Comandante Fidel, da Revolução e dos admiráveis êxitos do regime tanto na Economia quanto na Educação e na dignidade do povo cubano. Tudo, claro, embrulhado, por todos os oradores, no invólucro comum: o dever patriótico de espinafrar o imperialismo e os “guzanos” (vermes), cubanos que se atiravam ao mar e iam para Miami, num fluxo contínuo, desde 1960.

Como eu descera cedo, pude apreciar a chegada do distinto público. Eram trazidos em ônibus, em grupos cuja afinidade se podia perceber tão logo desciam pois tagarelavam entre si. Alguém, mais tarde, me explicaria que provinham dos locais de trabalho e eram acompanhados por um “compañero” que representava os olhos e os ouvidos do Estado.

Nesse dia, Fidel não apareceu, o que deve ter representado um alívio para aquela pequena multidão, pois quando o tirano comparecia, falava, e quando falava proferia aqueles discursos que ficaram famosos, não pelo conteúdo, mas pelo muito que lhe custava colocar um ponto final nas arengas que duravam horas.

Por que este relato? Porque o público, raro e ralo, presente à solenidade deste dia 7 de setembro em Brasília, por quanto a TV mostrou, era muito semelhante ao daquela tarde/noite na Tribuna Anti-imperialista. Funcionários públicos, sindicalistas e companheiros de partido, convocados pelo governo, cumprindo ordens e portando bandeirinhas numa estranha mistureba do verde e amarelo com convenientes detalhes vermelhos no vestuário. A Pátria passava muito bem sem essa.

Percival Puggina (78) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país.. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+. Membro da Academia Rio-Grandense de Letras.

 

        

 

 

Percival Puggina

06/09/2023

 

Percival Puggina

         Ninguém poderá dizer que dissimulo minhas convicções. Bem antes, eu as alardeio porque é para apresentá-las a outros que escrevo. De fato, não tenho objetivos adicionais quando sento diante do computador toda manhã ou quando, aos sábados ou domingos, gravo um vídeo. Assim, meus leitores habituais sabem que sou um conservador e, por isso, um institucionalista.

Instituições deveriam vir com uma bula, como remédios, cujos textos sintetizam a informação de que, se ruim com eles, pior sem eles.

Nosso modelo institucional é uma condenação eterna à instabilidade política, jurídica e econômica. Infelizmente, os congressistas que deveriam alterá-lo são os principais beneficiários desse modelo. Mesmo assim, pior sem eles. Seu misto de omissão e tolerância tem tolerado que o STF invada o seu “quadrado” e passe a dispor, segundo seu bel prazer, sobre temas que não integram seu elenco de conhecimentos ou competências. Como terras indígenas, contribuição sindical, armas, drogas, etc..

Que droga! Vejamos o caso da descriminalização do consumo de maconha, com a distinção entre consumidor e traficante, a ser feita na balancinha...  Em nota conjunta publicado no dia 16 de agosto, o Conselho Federal de Medicina e a Associação Brasileira de Psiquiatria afirmam (íntegra aqui):

- “Trata-se de droga que causa dependência gravíssima, com importantíssimos danos físicos e mentais, inclusive precipitando quadros psicóticos (alguns não reversíveis) ou agravando sintomas e a evolução de padecentes de comorbidades mentais de qualquer natureza, dificultando seu tratamento, levando a prejuízos para toda a vida”.

- “O consumo de drogas também contribui para a maior incidência de acidentes de trânsito, homicídios e suicídios, com redução no mundo e aumento no Brasil”.

- “É nos países com maior rigor no enfrentamento às drogas que há diminuição do número de casos de dependência química e de violência relacionada ao consumo e tráfico dessas substâncias”.

No ano passado, a ABP já afirmara (íntegra aqui):

- “Não há evidências científicas suficientes que justifiquem o uso de nenhum dos derivados da cannabis no tratamento de doenças mentais. Em contrapartida, diversos estudos associam o uso e abuso de cannabis, bem como de outras substâncias psicoativas, ao desenvolvimento e agravamento de doenças mentais”.

- “O uso e abuso das substâncias psicoativas presentes na cannabis causam dependência química, podem desencadear quadros psiquiátricos e, ainda, piorar os sintomas de doenças mentais já diagnosticadas”. 

- “No Brasil, o Conselho Federal de Medicina - CFM autoriza o uso compassivo do CBD apenas para crianças e adolescentes com epilepsia de difícil tratamento, por meio da Resolução nº 2.113 de 2014”.

- “As evidências atuais apoiam, no mínimo, uma forte associação do uso de cannabis com o aparecimento de transtornos psiquiátricos. Os adolescentes são particularmente vulneráveis ??a danos, devido aos efeitos da cannabis no desenvolvimento neurológico”.

O Presidente da ABP, Antônio Geral da Silva, falando em audiência pública no Senado há pouco mais de duas semanas, destacou a relação entre o assustador índice de suicídios no Brasil e consumo de álcool e outras drogas. Explicitando a maconha, perguntou, dirigindo-se ao seu conterrâneo, senador Rodrigo Pacheco que presidia a audiência pública (íntegra do vídeo aqui): “E nós estamos falando em liberação? ... Como nós vamos liberar? Como nós vamos facilitar o acesso? Isso é desconhecimento da matéria científica sobre o uso e consumo de álcool e outras drogas e especificamente da maconha. Sabem qual é a quantidade prevista que é segura para o consumo da maconha? Zero! Não há quantidade segura de uso da maconha. Se há que banir uma droga da terra é a maconha”.

Já debati muito sobre esse assunto e conheço a linha de abordagem de quem defende a liberação. Muitos dos que defendem são usuários. Usuários  ou não, segundo essa linha de raciocínio, o indivíduo tem o direito de comprar a droga, de se drogar, de vender as tábuas da parede da casa de seus pais, de desgraçar a vida dos que com ele convivem, de fazer com que todos à sua volta adoeçam e de não ser contido e nem tratado a contragosto. É o perigosíssimo discurso dos direitos sem deveres. Quando ele se reproduz na sociedade, está sendo organizada a estrutura psicossocial de uma vida em comum que será mistura de sanatório geral e presídio central.

Não pode haver direitos sem deveres, sendo que aqueles vêm depois destes. Não pode haver liberdade sem responsabilidade, sendo que aquela vem depois desta.

Quando o ser humano não é educado a dizer não a seus desejos e impulsos, pela família ou círculo de convivência, nem pelo rigor da lei, favorece-se o caminho para o transtorno de personalidade antissocial. Tratar de dependência química passando ao largo dessa evidência ou, mais grave ainda, afirmando o direito de não ser a pessoa submetida a algo que não deseja nem autoriza (como se estivéssemos tratando de uma dieta de legumes), simplesmente não tem cabimento.

Percival Puggina (78) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país.. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+. Membro da Academia Rio-Grandense de Letras.