• Luis Dufaur
  • 17/06/2022
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A guerra de fakes russa

Luis Dufaur


“Toda a história humana é a história da arte de enganar”, instruiu o general Alexander Vladimirov apresentando seu livro 'Teoria Geral da Guerra' numa escola de cadetes em Moscou. (Russian International Affaires Council. Moscou 15-04-2014)
Ele é vice-presidente do Colégio de Especialistas Militares da Rússia e um mestre na técnica de iludir no noticiário e nas ações da guerra.
Em russo é a “maskirovka”, ou “pequeno baile de máscaras”, em Ocidente se usa “guerra psicológica”, de “guerra da informação”, e os mais modernos “fake news” e “guerra híbrida”.
A Crimeia foi invadida por “pequenos homens verdes” desarmados e sem insígnias trazidos em caminhões militares sem identificação.
A evidência era de soldados russos, mas a mídia ocidental insistia em não saber de onde vinham.
Putin disse em conferência de imprensa que eram “patriotas voluntários” de férias, mas, cinco semanas depois, glorificou o operativo das tropas russas, não se incomodando com a contradição.
A mentira deu retorno e foi das maiores vitórias da “maskirovka”.

“A estratégia russa, fora e dentro do país, é dizer que a verdade não existe”, explicou à BBC
Peter Pomerantsev, que trabalhou anos na TV russa. “É um tipo de cinismo que tem muito eco no Ocidente, ... e os russos confiam nesse cinismo e o usam num contexto militar”, explicou.
A Rússia aprimorou o uso da mentira até a perfeição, registrou a jornalista Lucy Ash da BBC.
Na rua Savushkina nº 55 de São Petersburgo Putin mantinha uma central de “guerra da informação” que espalha na Internet palavras de ordem com milhares de pseudônimos.
O nome oficial é Internet Research Agency e é chamada 'fábrica de trolls'.
“O termo deriva da expressão trolling for suckers (enganando os trouxas)”.
Os trolls (enganadores) todo dia recebem uma instrução técnica como esta do 28 de fevereiro: “Ideia central: criar a opinião de que oficiais ucranianos estavam envolvidos na morte do oposicionista russo”.
Os comentários não devem ser identificáveis ideologicamente e devem parecer bem documentados para viralizar em artigos, comentários e tuites pró-russos.

Outra jornalista, a finlandesa Jessikka Aro entrou entre “os propagandistas pro Kremlin nas redes sociais” e ficou estarrecida: eles faziam uma guerra invisível para assediar, desalentar, intimidar e caluniar.
O general Valeri Gerassimov, atual chefe do Estado Maior russo (morto em combate segundo Kiev, ou vítima de expurgo em Moscou), explicou no semanário Military-Industrial Courier:
“as guerras não são mais declaradas, mas simplesmente começam e prosseguem por vias que não são familiares. O uso escancarado das forças militares é só para a fase final do conflito”.
“A nova forma de guerra não pode ser caracterizada como campanha militar”, diz o Centro de Pesquisas para a Segurança e a Estratégia da Letônia.
E Dmitry Kiselyov, tido como “o chefe propagandista do Kremlin” sublinha que hoje a “guerra de informação” é “a forma primordial de guerra”.
Outro favorito de Putin e filosofo ocultista Alexander Dugin prega uma “revolução conservadora” enquanto “oligarcas” putinianos transmitem atraentes promessas para os movimentos conservadores do mundo.
Nem sempre Putin as cumpre, o importante é enganar, por interesse estratégico, sem moral.
O referido general Gerassimov, insistiu na Academia Militar de Moscou: “as fronteiras entre a guerra e a paz se apagaram no século XXI”.
Hoje a ofensiva visa submergir o inimigo no caos mental espalhando fakes que apagam os limites entre o real objetivo e a ficção pré-fabricada.

“El Mundo” de Madri observa que muitos direitistas acreditam mais no líder russo do que nos nacionais.
“Die Zeit” vê muitos alemães acreditar mais em Putin do que no próprio chanceler; agentes da FSB (ex- KGB) infiltraram a campanha eleitoral de Trump.
Jeanne Smits ex-diretora do jornal “Présent” de Le Pen espantou-se com “tradicionalistas” católicos invertendo a mensagem de Fátima em favor da Rússia contra o Ocidente, e defendendo até que o Espírito Santo saiu de Roma após o Concílio Vaticano II e se instalou em Moscou.
Essa ofensiva bate na tecla de que a “nova Rússia” é o baluarte da moral tradicional cristã diante de ideologias do tipo LGBT, da ideologia de gênero, anti-vida, anti-família, etc., subprodutos da Nova Ordem Mundial com que hiper-capitalistas afogariam Ocidente, omitindo que esses males existem em grau exacerbado na própria Rússia.
Jeanne Smits registrou até o exagero de apresentar Putin investido da “missão providencial” de salvar o cristianismo.
Como fazer desaparecer a Igreja Católica dizendo ao mesmo tempo que está sendo salva por quem a extingue?
Smits fornece exemplos. Um “próximo entre os próximos” de Vladimir Putin, o multibilionário Konstantin Malofeev sustenta o think-tank Katehon do citado ideólogo gnóstico Alexander Dugin onde o “tradicionalista” Charles Upton defende que a “nova-Rússia” e o Patriarcado de Moscou vão salvar a Igreja de Ocidente, extinguindo os Papas de Roma.

Smits conclui que se ela fosse da KGB não agiria de outro modo para espalhar que a Igreja Católica fracassou.
A professora Cécile Vaissié, da Universidade de Rennes 2, especializada em Estudos Soviéticos e Pós-Soviéticos e autora do livro Les réseaux du Kremlin en France (As redes do Kremlin na França), mostra que as redes de propaganda sub-reptícia da URSS, outrora centradas no “pacifismo” nos últimos anos assumiram bandeiras “conservadoras” e de “extrema direita”.
Na realidade, diz ela, essas são práticas da velha KGB que fazem as pessoas perder o senso e impedem que entendam o que está acontecendo.
Alexeï Komov, representante do Patriarcado de Moscou nos Congressos Mundiais da Família, defende que a Revolução Bolchevista de 1917 nada teve de russa.
Ora, essa Revolução instalou o comunismo, proclamou o amor livre, legalizou o divórcio e instalou o aborto sem limites. 

Mas Komov, “convertido” pelo Patriarcado de Moscou em defensor da família, escapuliu-se da contradição alegando haver um “milagre” na Rússia que faz renascer os valores tradicionais da família e da tradição e que o regime de Stalin “acabou mais favorável à família” .
A estratégia falseia conceitos e posições para ludibriar as vítimas e Dugin comemora:

“Nós os embaralhamos passando do direitismo ao esquerdismo e vice-versa. Seduzimos ao mesmo tempo a extrema-direita e a extrema-esquerda” (Dugin).

*      Publicado originalmente em https://flagelorusso.blogspot.com/ em 29/05/2022.