• Augusto Nunes
  • 05 Março 2016

(Publicado originamente em Direto ao Ponto, blog da Veja)

Há dois dias, o comentário de 1 minuto para o site de VEJA constatou que, por negar-se a enxergar as mudanças operadas pela Lava Jato na paisagem brasileira, a alma penada de Lula ainda não descobrira que, hoje, nenhum fora da lei está acima da lei. Descobriu nesta manhã, quando a mão do destino - disfarçado de Polícia Federal - bateu à porta do apartamento do ex-presidente em São Bernardo.

Até este histórico 4 de março, Lula acreditava que, se todos são iguais perante a lei, ele sempre seria mais igual que os outros. Esse status de condenado à perpétua impunidade lhe permitiria, por exemplo, rejeitar intimações judiciais, zombar de autoridades dispostas a fazer Justiça e debochar do Estado Democrático de Direito. Acordou para a vida real ao ser acordado pela 24ª fase da Lava Jato, batizada de Alethea.

Conduzidos coercitivamente ao local do depoimento, Lula e o filho Lulinha tiveram de abrir o bico - pela primeira vez - sobre as bandalheiras em que se meteram. A família que se julgava inimputável foi enquadrada por juízes, procuradores e policiais que não temem criminosos da classe executiva. Alethea, convém ressaltar, é uma palavra grega que significa “busca da verdade”. Nesta sexta-feira, a verdade venceu a mentira.

A busca da verdade não cessará tão cedo. Mas a Era da Canalhice está perto do fim, confirmaram a discurseira do chefão e a contra-ofensiva ensaiada pelo Mestre e seu rebanho agonizante. Um dia depois de divulgado o desastroso desempenho do PIB em 2015, Lula tornou a festejar o Brasil Maravilha que só existe na cabeça baldia de embusteiros e na imaginação de cretinos fundamentais.

Ele também relançou a candidatura à Presidência que as revelações de Delcídio do Amaral haviam afundado de vez na véspera. A Alethea, por sinal, já dispunha de munição suficiente quando Delcídio começou a contar o que sabe - e o que sabe o ex-líder do governo no Senado vai adicionar toneladas de dinamite ao vasto arsenal da Lava Jato. Como Lula tentará escapar da sequência de explosões?

A resposta é fácil: ele vai ampliar ainda mais o acervo de mentiras que engordou algumas arrobas com o falatório desta tarde. Os truques e vigarices do mágico de picadeiro já não iludem sequer marilenas chauís. De novo, Lula não deu um pio sobre as acusações que o transformaram em campeão de impopularidade. Ele simplesmente não tem como justificar as delinquências que protagonizou, sobretudo as praticadas no ofício de camelô de empreiteira.

A “mobilização nacional da militância” prometida por cartolas do PT e pelegos que prosperam nos “movimentos sociais” só serviu para reafirmar que o partido que virou sinônimo de roubalheira tornou-se um ajuntamento de fanáticos sem cura. Manifestaram-se nesta sexta os devotos que restam. Os protestos da turma da estrela reuniram menos gente que procissão de vilarejo.

Muito mais abrangente e eficaz foi a mobilização da Polícia Federal decretada pela Alethea. Munidos de mandados de busca e apreensão, destacamentos de agentes vasculharam residências, escritórios e esconderijos de gente graúda engajada no projeto criminoso de poder. Declarações de delegados envolvidos na ofensiva atestaram que a Lava Jato já reuniu muito mais provas do que se imaginava.

Outras tantas foram recolhidas na devassa que atingiu 44 alvos, de Marisa Letícia e três lulinhas a Paulo Okamotto e o bunker no Instituto Lula, da Odebrecht e da OAS aos sitiantes de araque Fernando Bittar e Jonas Suassuna, passando por coadjuvantes como o engenheiro que trabalha de graça nas férias. Ficou ainda mais variado o elenco recrutado pela operação que investiga o maior esquema corrupto descoberto desde o Dia da Criação.

Hoje se ouviu o choro das carpideiras transformadas em animadoras de velório. Em 13 de março, a imensidão de indignados invadirá as ruas para exigir, além da punição de todos os poderosos patifes, o imediato despejo do governo destroçado pela incompetência, pelo cinismo, pela corrupção e pelo Código Penal. Oito dias depois dos uivos da subespécie em extinção, a nação ouvirá o rugido do país que presta.
 

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  • Marcus Vinicius Motta
  • 04 Março 2016

 

Outro dia eu li uma excelente reportagem da New Yorker sobre a chanceler alemã Angela Merkel, onde o jornalista buscava entender as razões para o seu sucesso - chega a ser chamada de "mutti" (mãe) pelos alemães - num país que tomou aversão por cultos à personalidade.

E desde a sua juventude até o atual período como comandante da nação, uma característica é sempre presente: a monotonia. Sim, Angela Merkel é uma mulher comum, uma pessoa "sem graça", no entanto é justamente isso que faz seu sucesso, porque as pessoas podem saber o que esperar dela e a enxergam como uma delas.

Em 1991, o fotógrafo Herlinde Koelbl começou uma série de fotografias chamada "Traços do Poder" onde retratava políticos alemães e observava como mudavam ao longo de uma década. O fotógrafo conta que homens como o ex-chanceler Gerhard Schröder ou o ex-ministro das relações exteriores Joschka Fischer pareciam cada vez mais tomados pela vaidade, enquanto Merkel, com seus modos desajeitados, não passava nenhuma idéia de vaidade, mas de um poder crescente que vinha de dentro.

A vaidade é subjetiva enquanto a ausência desta é objetiva, daí que Merkel é tão eficiente enquanto outros políticos parecem se perder nas liturgias e rapapés do poder.

Essa normalidade é vista em vários outros países - ainda que exista a vaidade, que é de cada pessoa - como no caso de deputados suecos que moram numa espécie de república tal qual a de estudantes e lavam e passam a própria roupa.

Certa vez, vi uma reportagem de um jornal britânico analisando uma foto do primeiro-ministro David Cameron lavando a louça na cozinha. A reportagem não se espantava com o fato do primeiro-ministro lavar a própria louça, já que Tony Blair fazia o mesmo e Margaret Thatcher cozinhava para o marido, mas observava uma tábua de cortar carne com a expressão "calma, querida" num canto.

A própria Angela Merkel mora no mesmo apartamento de sempre com o marido e a única mudança que houve em relação ao seu tempo fora do poder é a presença de um guarda na porta do prédio. Eles compram entradas para assistir ópera com o próprio cartão de crédito e entram no teatro junto com todos, sem nenhum esquema especial.

Daí partimos para o Brasil, onde um simples governador de estado possui jatinhos, helicópteros, ajudantes de ordem e comitivas com batedores de moto que param o trânsito para que ele passe. Pessoas que vivem em palácios, como se ainda fosse alguma corte real. Empregadas, arrumadeiras, garçons, equipes de cozinheiros, serviço de quarto, motoristas, inúmeros seguranças, esquemas especiais para entrar ou sair de algum lugar.

Essa é a diferença: a normalidade do poder, a noção de que um servidor público é apenas um servidor público, seja um escriturário ou o presidente/ primeiro-ministro da nação. Eles continuam sendo homens e mulheres, maridos e esposas, pagadores de impostos, trabalhadores e cidadãos.

Cidadania é isso.
 

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  • Genaro Faria
  • 04 Março 2016

Quando um ministro da Justiça é trocado por um afilhado do ministro da Casa Civil e por pressão política de um ex-presidente, ambos investigados por supostos crimes de improbidade pela Polícia Federal, órgão subordinado ao Ministério da Justiça, não há como não vislumbrar nessa manobra um golpe capaz de infirmar o último esteio sobre o qual se funda uma democracia.

Tenho lido, aqui e ali, censuras de jornalistas sérios que, no entanto, parecem ignorar os fundamentos do Direito Administrativo, e por isso mesmo consideram essa questão de um modo epidérmico, superficial, divorciado das consequências que ela implica para a sobrevivência do Estado de Direito, numa palavra, a Democracia.

A um servidor, agente público, seja ele nomeado por força da qualificação em concurso público ou por comissão - caso em que o critério para a sua nomeação não se sujeita a nenhuma regra objetiva - não cabe o direito discricionário. Um servidor público não essa liberdade de escolher sequer a oportunidade que lhe parecer mais propícia para fazer o que a lei lhe determina.

Este é o caso de um delegado da Polícia Federal, por exemplo, que é nomeado pelo Ministro da Justiça, mas não é subordinado a ele senão que cumpra suas funções conforme a norma objetiva e nos limites de sua competência legal.

Este é o traço distintivo entre um policial e um jagunço.
Se um policial tiver que obedecer às ordens de quem o nomeia e, não, à lei, então estará instalada a insegurança de um regime no qual o governante é o Estado, portanto, a lei. L’État c’est moi, como proclamou o rei francês Louis XIV.

Ora, não é este o Estado, mutatis mutandis, ou seja, com os apetrechos da coroa e cetro substituídos por um quepe militar e a batuta de um ditador que os “democratas populares” se empenham para estabelecer aqui?

É claro que sim. E nada poderá demovê-los de buscar, devotamente, esse reino aqui na terra. Um reino onde todos serão dignamente miseráveis, porque ignaros e alienados, e os eleitos, os ungidos pela fé inquebrantável na utopia socialista os governarão dos templos jacobinos da deusa da Razão.

Parece uma fábula? Não duvide. É uma fábula mesmo. Um país no qual o maior líder político não tem a menor cerimônia de dizer que tem preguiça de ler até jornal, muda o figurino para ficar parecido com a elite econômica que ele diz detestar e fez, premido por contingências insuperáveis, uma sucessora que, apesar de ter nascido e estudado aqui, nunca aprendeu alíngua que lhe seria nativa, se não for uma fábula será o quê? Um filme de ficção científica?
 

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  • Fernanda Barth
  • 03 Março 2016

(Publicado originalmente no site fernandabarth.com.br)

Recebi, uns dias atrás, a mensagem do colega do grupo Pensar +, Ricardo Bergamini, dando conta de mais um absurdo que tentam emplacar no Congresso, que parece a própria Ilha da Fantasia, onde medidas absurdas são propostas e tomadas, sem avaliar as consequências econômicas, baseadas unicamente no pensamento mágico de que o dinheiro público nunca se esgotará.

Enquanto a sociedade está preocupada com a crise econômica e política que assola o país, o senador Romero Jucá (PMDB de Roraima), com a anuência e aprovação do senador Randolfe (Amapá), da recém formada REDE, tentam emplacar uma PEC que emprega, de uma só vez, 10 mil novos funcionários públicos federais – SEM CONCURSO – e pagos com o nosso dinheiro. Meu colega Bergamini a apelidou de “PEC Rexona”, pois “sempre cabe mais 10 mil funcionários quando o dinheiro é público”. O projeto (PEC 03/2016) deve ser votado na Comissão de Constituição e Justiça esta semana.

Já temos uma quantidade absurda de servidores no Congresso Nacional, para atender 81 senadores e 513 deputados federais. Bergamini lembrou que, conforme relatório de outubro de 2016 do Ministério do Planejamento, hoje temos 35.256 servidores públicos (24.896 Ativos e 10.360 inativos). Os 24.896 servidores ativos não caberiam no estádio Mané Garrincha em Brasília.

PROJETO NÃO PREVÊ IMPACTO FINANCEIRO
Estes 10 mil novos servidores eram antigos Cargos de Comissão (de livre nomeação pelos políticos), trabalhadores em cooperativas contratadas pela administração pública e até quem tem apenas um recibo ou comprovante de depósito para comprovar o vínculo de serviço prestado. A maioria contratados para serviços diversos pelos próprios senadores, em seus estados de origem, Roraima e Amapá. Não há, em ambos as redações, qualquer menção ao impacto financeiro extra que a proposição acarretará. Segundo estimativa do Ministério do Planejamento, que é contra a PEC, o custo adicional aos cofres públicos pode variar entre R$ 80 milhões e R$ 100 milhões ao mês. Isto poderia chegar a R$ 1,2 bilhões por ano.

“FAZENDO JUSTIÇA” CONTRA A LEI
Nos termos em que tramita no Senado, a proposta contraria um dos pilares da Constituição de 1988: o concurso público como forma prioritária de ingresso no serviço público e a única que permite ao servidor adquirir estabilidade.

Nos anos finais do regime militar (1964-1985), quando a ditadura resolveu dar autonomia política ao território de Rondônia, os trabalhadores que prestaram serviços ao território foram incorporados pela União, mesmo sem ter realizado concurso público. Mas na época, tal possibilidade não era vedada pela Constituição – a restrição foi imposta a partir de 1988, com a promulgação do texto constitucional em vigor.

Para Randolfe, é preciso agora “fazer justiça” e garantir o vínculo funcional dos servidores dos ex-territórios, pois a relação trabalhista teria sido estabelecida antes da vigência da atual Constituição. Para Jucá também e uma questão de “justiça” e reconhecimento pelo trabalho dos que “contribuíram […] principalmente, para que Roraima e o Amapá se erguessem como unidade da Federação”. Segundo o peemedebista, o grupo foi importante inclusive para a implantação do “poder público local”. Deve estar falando dele mesmo e do IMPÉRIO que construiu no Estado. Se estes servidores não foram incorporados na época do governo Fernando Henrique Cardoso, agora precisam ser apenas por concurso público. Abrir uma exceção à regra, apenas para fazer “justiça” é na verdade politicagem.

GARANTINDO VOTOS ETERNOS
Roraima e Amapá, somados, respondem por menos 0,5% do PIB nacional – os estados não possuem indústrias e nem são grandes produtores de alimentos ou matérias primas, portanto, totalmente dependentes dos recursos da União. De acordo com dados referentes a 2014 e reunidos nos portais da Transparência da União e do Governo do Estado, Roraima, por exemplo, tem cerca de 85 mil servidores federais, estaduais e municipais, para uma população de apenas 505 mil habitantes – média de um servidor para cada seis pessoas. Estive em Roraima em 2014 e 2015 e pude atestar que o funcionalismo público é o maior setor da economia, depois vem o Bolsa Família. Isto favorece o coronelismo político vigente nestes estados, onde todos que querem trabalhar e viver, devem favores a algum político poderoso.

Os respectivos senadores estão nomeando suas bases eleitorais, garantindo-lhes renda e voto eterno. Enquanto em São Paulo um senador se elege com 11 milhões de votos, em Roraima e no Amapá bastam em torno de 100 mil votos. Em ano de eleições municipais e grave crise financeira, estes 10 mil soldados políticos, cheios de gratidão, serão poderosos cabos eleitorais para eleger os prefeitos e vereadores apoiados pelos senadores Jucá e Randolfe. Esperamos que a CCJ do Senado não aprove este Projeto.
 

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  • Jayme Eduardo Machado
  • 03 Março 2016

(Publicado originalmente em Zero Hora)

Ainda que não ambicione reverter a injustiça de nosso sistema de Justiça penal, o projeto “10 Medidas Anticorrupção” propõe abrir uma janela da qual possamos todos enxergar um horizonte mais justo. É isso. Quase 4 milhões de brasileiros, número equivalente ao dos que viabilizaram a iniciativa popular que resultou na Lei da Ficha Limpa, não podem estar enganados. E muito menos se deixar enganar pelos que, ao invés de colaborar no aprimoramento do sistema, preferem “espiolhar” inconstitucionalidades sem oferecer uma só sugestão para melhorá-lo.

Nesse vale-tudo para desmoralizá-lo, o contorcionismo do saber jurídico acadêmico pode ir a extremos como teorizar sobre hipóteses absurdas, algumas nem sequer identificadas, erros não demonstrados e inverdades que os proponentes das “10 Medidas” sequer imaginam. Como, por exemplo, acerca do direito pleno ao “habeas corpus”, que elas obviamente asseguram, mas nos limites do seu exercício para a garantia fundamental do investigado, não para iluminar o “sendeiro” dilatório que conduz à impunidade pela trilha da prescrição. Ou em torno do agravamento da pena que o projeto adota, não para além da aplicada ao homicídio, como sugerem as críticas, mas para ensejar o aumento do prazo prescricional.

Faltaria espaço para contrapor, uma a uma, objeções algumas plenas de engenho, mas, de regra, inúteis. Que às vezes resvalam, ou na vulgaridade do desrespeito institucional, ou na estagnação mental dos que usam antolhos para conservar sua visão de conve- niência ao abrigo das soluções encontradas por sistemas judiciários de democracias mais aptas ao combate à corrupção e menos sujeitas aos riscos da impunidade. Que aqui predomina há mais de 500 anos, desde a origem portuguesa de nosso corrompido patronato político.

Com os olhos do interesse público, veremos que a única garantia do nosso sistema judiciário que o projeto viola é a do próprio arcabouço da impunidade em que se baseia. Críticos, para serem úteis, façam como os 4 milhões de brasileiros e terão recuperado mais de 500 anos.

*Jornalista, ex-subprocurador-geral da República
 

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  • Fernando Schüler
  • 02 Março 2016

(Publicado originalmente na revista Época)

As aulas voltaram, por essas semanas, e decidi tirar a limpo uma velha questão: há ou não doutrinação ideológica em nossos livros didáticos? Pra responder à pergunta, fui direto na fonte: analisei alguns dos livros de história e sociologia mais adotados no país. Pesquisei nas editoras, encontrei uma livraria que dispunha de todos os exemplares e pus mãos à obra. Já li muita coisa na vida, mas não foram fáceis as horas que passei tentando entender o que se dizia em todos aqueles livros. No fim, acho que entendi.

O resultado é o seguinte: dos dez livros que analisei, 100% tem um claro viés ideológico. Não encontrei, infelizmente, nenhum livro “pluralista” ou particularmente cuidadoso ao tratar de temas de natureza política ou econômica. Talvez livros assim existam, e gostaria muito de conhecê-los. Falo apenas dos que me chegaram às mãos. Tudo livro “manco”. E sempre para o mesmo lado.

Com um adendo: vale o mesmo para escolas públicas e privadas. Imagino não serem poucos os sujeitos que jantam à noite, com os amigos, e reclamam do viés “anticapitalista” da sociedade brasileira. Sem desconfiar que anticapitalista mesmo é o discurso que seu filho adolescente vai engolir na manhã seguinte, sem chance de reação, no colégio.

O viés politico surge no recorte dos fatos, na seleção das imagens, nas indicações de leitura, na recomendação de filmes e links culturais. A coisa toda opera à moda Star Wars: o lado negro da força é a “globalização neoliberal” e coisas afins; o lado bom é a “resistência” do Fórum Social Mundial, de Porto Alegre, e dos “movimentos sociais”, MST à frente. Tudo parece rudimentar demais para ser verdade. Mas está lá, nos livros em que nossos adolescentes estudarão.

No Brasil contemporâneo, chega a ser engraçado. FHC é Darth Wader; Lula é Luke Skywalker. Pra ser sincero, a saga de George Lucas me parece bem mais sofisticada do que o roteiro seguido pelos nossos livros didáticos. Em particular, quando tratam de nossa história recente.
No livro Estudos de História, da Editora FTD, por exemplo, nossos alunos adolescentes aprenderão o seguinte sobre o governo de Fernando Henrique: era neoliberal (apesar de “tentar negar”) e seguiu a cartilha de Collor de Melo; os “resultados dessas políticas foram desastrosos”. Na sua época, havia “denúncias de escândalos, subornos, favorecimentos e corrupção” por todos os lados, mas “pouca coisa se investigou”.

Nossos alunos saberão que “as privatizações produziram desemprego”, e que o país assistia, naqueles tempos, ao aumento da violência urbana e da concentração de renda e à “diminuição dos investimentos”. E que, de quebra, o MST pressionava pela reforma agrária, “sem sucesso”.

Na página seguinte, vem a luz. Ilustrado com o decalco vermelho da campanha “Lula Rede Brasil Popular”, o texto ensina que, em 2002, “pela primeira vez” na história brasileira, alguém que “não era da elite” é eleito presidente. E que, graças à “política social do governo Lula”, 20 milhões de pessoas saíram da miséria. Isso tudo faz a economia crescer e, como resultado: “telefones celulares, eletrodomésticos sofisticados e computadores passaram a fazer parte do cotidiano de milhões de pessoas, que antes estavam à margem desse perfil de consumo”.

Lendo isto, me perguntei se João Santana, o marqueteiro do PT, por ora preso em Curitiba, escreveria coisa melhor, caso decidisse publicar um livro didático. E fui em frente.

Na leitura seguinte, do livro História Geral e do Brasil, da Editora Spicione, o quadro era o mesmo. O PSDB é um partido “supostamente ético e ideológico” e os anos de Fernando Henrique são o cão da peste. Foram tempos de desemprego crescente, de “compromissos com as finanças internacionais”, em que “o crime organizado expandiu-se em torno do tráfico de drogas, convertendo-se em verdadeiro poder paralelo nas favelas”. E mesmo “dentro das prisões”, transformadas em “centros de gerenciamento do tráfico e do crime organizado”, acrescentam os autores.

Com o Governo Lula, tudo muda, ainda que com alguns senões. Numa curiosa aula de economia, os autores tentam explicar por que a “expansão econômica” foi “limitada”, naqueles anos: a adoção de uma “politica amigável aos interesses estrangeiros, simbolizada pela liberdade ao capital especulativo”; pela “manutenção, até 2005, dos acordos com o FMI” e dos “pagamentos da dívida externa”.
O livro termina apresentando a tensão entre o Brasil “pessimista”, dos anos FH, com os anos “otimistas” do lulismo, e conclui com um prognóstico: “as boas notícias nos últimos anos indicavam que talvez os anos do pessimismo a toda prova já tenham passado e, nesse caso, pode ser o momento do não negativo como um novo paradigma para o Brasil”.

O livro História conecte, da Editora Saraiva, segue o mesmo roteiro. O governo FHC é “neoliberal”. Privatizou “a maioria das empresas estatais” e os U$ 30 bilhões arrecadados “não foram investidos em saúde e educação, mas em lucros aos investidores e especuladores, com altas taxas de juros”. A frase mais curiosa vem no final: em seu segundo mandato, FH não fez “nenhuma reforma”, nem tomou “nenhuma medida importante”. Imaginei o presidente deitado em uma rede, no quarto andar do Palácio do Planalto, enquanto o país aprovava a Lei de Responsabilidade Fiscal (2000), o fator previdenciário (1999) ou o bolsa escola (2001).

FHC manteve o país “alinhado” e “basicamente dependente dos EUA”, enquanto Lula aumentou as relações diplomáticas e comerciais com a “União Europeia e vários países africanos, asiáticos e sul-americanos”. FH havia beneficiado os especuladores; Lula beneficiou os “trabalhadores” e as “camadas mais pobres”. De quebra, “apoiou as indústrias de exportação” e “incentivou muitas empresas a se internacionalizarem”. Lendo isso, tive ganas de sair pelas ruas, com uma bandeira vermelha. Mas me contive.

O padrão “João Santana” se repete no livro História para o ensino médio, da Atual Editora. É curioso o tratamento dado ao caso do “mensalão”. Alguma menção ao julgamento realizado pelo Supremo Tribunal Federal? Não. Nossos alunos saberão apenas que houve “denúncias de corrupção” contra o governo Lula, incluindo-se um caso conhecido como mensalão, “amplamente explorado pela imprensa liberal de oposição ao petismo”.

No livro da Atual Editora, é interessante perceber o tratamento dado à América Latina. A tensão política surge, como de regra, a partir da clivagem “contra ou a favor do neoliberalismo”. Nossos alunos serão instruídos sobre a resistência oferecida “à globalização capitalista neoliberal” pelo Fórum Social Mundial, de Porto Alegre, e poderão saborear, sob o rótulo de “fonte histórica”, um trecho do “manifesto de Porto Alegre”.

Sobre o Mercosul, nossos alunos aprenderão que o Paraguai foi excluído do bloco em 2012, em função do “golpe de Estado” que tirou do poder o presidente Fernando Lugo. Saberão que, com a eleição de Hugo Chávez, a Venezuela torna-se o “centro de contestação à política de globalização capitalista liderada pelos Estados Unidos”. Que “a classe média e as elites conservadoras” não aceitaram as transformações produzidas pelo chavismo, mas que, mesmo assim, o comandante “conseguiu se consolidar”. Sobre a situação econômica da Venezuela, alguma informação? Alguma opinião crítica para dar uma equilibrada no jogo e permitir que os alunos formem uma opinião? Nada, por óbvio.

Interessante é o tratamento dado às ditaduras na América Latina. Para os casos da Argentina, Uruguai e Chile, um capítulo (merecido) mostrando, no detalhe, os horrores do autoritarismo e seus heróis: extratos de As veias abertas da América Latina, de Eduardo Galeano; as mães da Praça de Maio, na Argentina; o músico Victor Jara, executado pelo regime de Pinochet, e uma sequência de indicações de filmes sobre a “resistência” e a luta pelos direitos humanos, no continente. Tudo perfeito.

Quando, porém, se trata de Cuba, a algumas páginas de distância, a conversa é inteiramente diferente. A única ditadura que aparece é a de Fulgêncio Batista. Em vez de filmes como Antes do anoitecer, sobre a repressão cubana ao escritor e homossexual Reynaldo Arenas, nossos estudantes são orientados a assistir Diários de motocicleta, Che, e Personal Che.

Não deixa de ser engraçado. Quando fala da Argentina, o livro sugere uma “Visita ao patrimônio” no “Parque da Memória”, uma (justa) homenagem às vitimas do terrorismo de Estado, em Buenos Aires. Quando trata de Cuba, a “visita ao patrimônio” sugerida pelos nossos isentos autores é ao “Museu da Revolução”, com especial recomendação para observar o “pequeno iate” em que Fidel e Che aportaram para a gloriosa revolução. E, imperdível: uma salinha, o rincón de los cretinos, feita para ridicularizar tipos como Batista, Reagan e Bush.

As restrições do castrismo à “liberdade de pensamento” surgem como “contradições” da revolução. Alguma palavra sobre os balseros cubanos? São milhares, neste mais de meio século. Alguma fotografia, sugestão de filme ou “link cultural”? Alguma coisa sobre o paredón cubano? Há fotos muito boas sobre estes temas, mas nenhuma aparece em livro nenhum.

Alguma coisa sobre Oswaldo Payá, Orlando Zapata, Yoani Sánchez e a luta pelos direitos humanos na Ilha? Alguma coisa sobre as “Damas de Blanco”? Zero. Nossos estudantes não saberão nada sobre isto. Não terão essa informação para que possam produzir seu próprio juízo. É precisamente isso que se chama ideologização.

A doutrinação torna-se ainda mais aguda quando passamos dos livros de história para os manuais de sociologia. Em plena era das sociedades de rede, da revolução maker, da explosão dos coworkingse da economia colaborativa, nossos jovens aprendem uma rudimentar visão binária de mundo, feita de capitalistas malvados x heróis da “resistência”. Em vez de encarar de frente o século XXI e suas incríveis perspectivas, são conduzidos de volta a Manchester do século XIX.

Não acho que superar esse problema seja uma tarefa trivial. A leitura desses livros me fez perceber que há um “mercado” de produtores em série de livros didáticos muito bem estabelecido no país, agindo sob a inércia de nossas editoras e a passividade de pais, professores, diretores de escolas e autoridades de educação. Pessoas comprometidas com uma visão política de mundo e dispostas a subordinar o ensino das ciências humanas a essa visão. Sob o argumento malandro de que “tudo é ideologia”, elas prejudicam o desenvolvimento do espírito crítico de nossos alunos. E com isso fazem muito mal à educação brasileira.

*Doutor em Filosofia (UFRGS) e Professor do Insper. É titular da Cátedra Insper Palavra Aberta e curador do Projeto Fronteiras do Pensamento.
 

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