• Percival Puggina
  • 06/02/2022
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FÉ, RAZÃO E... ALIENAÇÃO

 

Percival Puggina

 

         A aparente contradição entre a fé e a razão suscita um debate que – mais do que recorrente – tem sido permanente nos últimos três séculos da história. Durante todo esse período, assim como houve quem lesse a Bíblia como um livro científico, houve quem lesse os livros da ciência como obra revelada e nesse teimoso engano abriram-se trincheiras que ainda hoje persistem em mentalidades mais renitentes. Contudo, a verdadeira fé, por ser ato humano, não prescinde da verdadeira razão.

Que a Bíblia não é um livro científico parece mais do que evidente. E que a razão e a observação – a testa e o tato – não são as vertentes definitivas do que é verdade ou verdadeiro, deveria ser igualmente óbvio. Conforme Karl Popper (um agnóstico que não pode ser apresentado como defensor da religiosidade), nossos sentidos costumam nos iludir, as verdades científicas são sempre hipóteses provisórias e acreditar que a razão produz a verdade é outra espécie de fideísmo (qualquer bom filósofo sabe o quanto a razão conduz a paradoxos).

A dimensão religiosa é natural à pessoa humana, assim como o são, entre outras, as dimensões artística, moral, econômica e política. Qualquer uma delas pode ser desenvolvida ou não e o fato de perder impulso no transcurso da existência de algumas pessoas não significa que tenha deixado de existir. Por isso, o fenômeno religioso é presente em todos os povos e épocas. Há dezoito séculos, Plutarco já sustentava: “Podereis encontrar uma cidade sem muralhas, sem edifícios, sem ginásios, sem leis, sem moeda, sem cultura das letras. Mas um povo sem Deus, oração, juramentos, ritos, tal nunca se viu”. Todo conhecimento antropológico posterior veio corroborar essa observação, assim como veio comprovar a preeminente posição da religiosidade em todas as culturas.

Joachim Wash, em seu Estudo comparativo das religiões, ensina que a experiência religiosa é uma resposta do homem à realidade última das coisas, a qual se expressa num Ser superior, transcendente e, todavia, susceptível de relacionar-se com ele; que orientar-se para esse Ser exige do homem uma resposta total e que dele aproximar-se constitui uma experiência inigualável, criativa e transformadora.

A naturalidade da dimensão religiosa jamais oblitera e ressurge, inclusive, nas explicações redutivas, de cunho científico, que a pretendem suprimir. Em todas há uma fé (ainda que na matéria, na natureza, no próprio homem, nas leis econômicas, no valor da sensualidade, na política, etc.) e, consequentemente, em todas há uma doutrina inquestionável e alguma forma de culto. Por isso, Max Scheler, não sem alguma ironia, afirma ser impossível se convencer alguém de que Deus existe pela mera razão. Mais fácil, constata ele, é mostrar que essa pessoa colocou algo no lugar de Deus: a si mesmo, a riqueza, o poder, o prazer, a beleza, a ciência, a arte, etc.. De fato, é curta a distância, mas há um abismo qualitativo entre o amor a Deus e a idolatria.

Dada a naturalidade do fenômeno religioso e da dimensão religiosa do ser humano, recusá-las é negar realidade ao próprio ser. E isso é uma forma de alienação. Como a vida se encarrega de evidenciar, se adotamos a Razão por fonte única da verdade, deixamos o homem sem possibilidade de resposta para as maiores questões de sua existência – tais como o sofrimento, o amor, a esperança, a morte e a própria finalidade da vida – que não se resolvem no plano da razão ou no dos sentidos. Ignorá-las, como tantos ensaiam fazer, é pura e simples alienação.

Plutarco: De natura deorum, citado em Religião e Cristianismo (ITCR PUCRS)

Karl Popper: conforme citado por Vitorio Messori em Pensare la Storia.

Max Scheler: resumido da citação feita à obra Vom ewigen im Menschen, em Religião e Cristianismo (idem).

Percival Puggina (77), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.

 


Menelau Santos -   09/02/2022 19:19:16

Professor, que texto memorável! Obrigado Professor! Com sua licença, gostaria de mencionar uma série de vídeos sobre o assunto que está à disposição no Youtube do Professor Emilio Angueth com o tema "A Fé Perante a Igreja Moderna".

José Rui Sandim Benites -   08/02/2022 20:15:09

Como sempre, grande reflexão do nosso mestre Puggina. E, vejo uma tentativa de influenciar o ateísmo nas pessoas, dizendo: olhem os famosos que não acreditam em Deus. Na grande mídia. E, vejo os argumentos dizendo: o homem por ser finito. Tem que acreditar em alguma coisa, para compensar a finitude da vida. E, que com o pensamento lógico, não tem argumento que possa mostrar a divindade de um Deus. Digo materialismo puro. Não tem cultura metafísica, não tem sentimento de querer acreditar no que não vê, e não toca. E, os ateístas se acham intelectualmente superiores. E digo , está intelectualidade superior é o seu Deus. Não olham para a natureza ao seu redor. Nao olham para o seu interior. A beleza da perfeição de si e do mundo ao seu redor. E quem comanda a tudo isto? A não ser o Grande Arquideto da natureza.