• Valdemar Munaro
  • 03/11/2023
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Assassinos



Valdemar Munaro

       Os tristes episódios perpetrados em Israel por terroristas do Hamas podem já ser inferidos e contemplados na fundação histórica do Islã. Conforme biografia sobre Maomé, escrita por Barnarby Rogerson, a Arábia no nascente Islamismo do século VII d. C., era habitada também por muitos judeus.

Centenas deles que resistiram à nova fé, foram mortos e degolados na presença do próprio Profeta e com sua aprovação.

A terra sagrada de Meca e Medina guarda, portanto, de modo silencioso e sôfrego, o sangue judaico de decapitados. Judeus e muçulmanos, sabemos, são descendentes e herdeiros do mesmo cavaleiro da fé (expressão de Kierkegaard), Abraão, e se tornaram irmãos pela benevolência e graça de Deus, mas, ao longo do tempo, vergaram-se à desgraça de uma fraternidade assassina que rasga os mantos da comunhão enchendo de dor e medo os amantes da paz e da concórdia.

O terrorismo fere o Islã tanto quanto fere qualquer outra expressão religiosa. A vida do Profeta, por sua vez, honestamente falando, não foi cem por cento limpa, nem pura. Ao se casar pela quinta vez, em 626, com Zaynad, sua linda nora, Maomé rompeu com o mandamento que ele mesmo tinha estabelecido para todos os muçulmanos: ter no máximo quatro esposas. Mas Ele resolveu o dilema com uma revelação que veio em benefício de si mesmo: a sura 33 lhe concedeu carta branca para se casar uma quinta vez: "Ó Profeta", diz o versículo 50, "tornamos legais para ti as tuas esposas (...) e qualquer outra mulher crente que se oferecer ao Profeta e que ele quiser desposar: privilégio teu, com exclusão dos demais crentes (...)".

O poeta, Ka'b ibn al-Ashraf, descendente de uma tribo judaica em Medina, ironizou um casamento anterior que Maomé tinha contraído com uma outra mulher, Hafsah, viúva de um homem que pereceu numa batalha muçulmana.

O poeta comparou o comportamento de Maomé com aquele de Davi que enviou o general e amigo Jônatas à morte, pondo-o à frente de um conflito, para poder ficar depois com Betsabé, sua esposa. Ka'b foi oportunamente esfaqueado e morto por ofender e difamar o Profeta. Mas se o Alcorão do Profeta e o Profeta do Alcorão chancelam a eliminação de infiéis, o que se pode esperar de seus discípulos radicais?!

O século VII, nas regiões da Arábia, registrava a presença de muitos judeus, muito embora não existisse, naquele então, o estado de Israel. Na ocasião em que o exército muçulmano se aproximou de Medina para conquistá-la um dos seus guerreiros bradou: "Nós enfrentamos duas coisas: ou Deus garantirá a superioridade sobre eles, ou Deus nos destinará o martírio. Eu não me importo sobre qual seja o destino - pois existe o bem em ambos".

Em outras palavras, é este o leitmotiv da cruzada terrorista: no seu reino deve haver uma só cor, uma só cultura, uma só crença, um só livro, um só povo, um só modo de ser e de pensar. Nos seus ideais não deve haver lugar para meios-termos, meias-luas, pardos, mestiços e miscigenados. Deve ser o tudo ou o nada, a raça pura ou a impura, o fiel ou o infiel. "Os revolucionários", diz o historiador polonês Leszek Kolakowski, "não creem no purgatório; creem na via sacra, no inferno e no paraíso, no reino da libertação total e no reino do mal total".

Pode ser paradoxal, mas foi exatamente esse fundamentalismo extremista religioso que se acrescentou à atividade revolucionária marxista, ateia e materialista, temperando com tentações purificadoras as ações radicais que praticam, desdenhando excrescências maniqueístas de limpeza étnica e cultural.

Assassinos, terroristas e revolucionários se assemelham em tudo com seus métodos e objetivos: estrangular violentamente as diferenças, abater sem piedade os desconfortos plurais, instalar pela força as hegemonias ideológicas culturais, políticas ou religiosas.

O psiquiatra Theodore Dalrymple diagnosticou lucidamente a identidade nas doutrinas teologais da Irmandade Muçulmana representada pelo militante, radical e poeta, Sayyid Qutb (1906 - 1966 - enforcado por Nasser) com os ideais da doutrina comunista apregoada e ensinada por Karl Marx (1818 - 1883) e seus sequazes. Qutb queria uma única religião, a islâmica, mas sabia que ela não aconteceria apenas com pregações. Marx queria uma única sociedade, sem classes e sem opositores, a comunista, mas sabia que ela não viria por espontâneas democracias reformistas.

Qutb sabia, pois, que seria necessário o emprego da coação violenta e terrorista para implantar uma única fé no mundo. Marx sabia que seria inevitável e necessário o emprego da violência revolucionária para instalar o comunismo. O terrorismo islâmico religioso e a violência revolucionária marxista antirreligiosa terminaram se abraçando numa espécie de irmandade siamesa paradoxal e autofágica.

Nos anos medievais, homens estranhos habitavam castelos inexpugnáveis em rochedos montanhosos da Síria e da Armênia e eram conhecidos pelo nome de 'assassinos'. Carne e leite de cabras, juntamente com tâmaras do deserto, alimentavam os seus corpos, mas suas mentes nutriam-se de outra comida: o excremento dos demônios. Seu ofício assassino era assaltar e matar quem atravessasse seu caminho.

Obedecendo cegamente às ordens do 'Velho da Montanha', cumpriam o sanguinário e impiedoso ato de tirar vidas alheias e/ou de morrer. Quando mandados, atiravam-se até aos penhascos para despedaçar a própria vida. Como recompensa, o paraíso, cujo prêmio prometido é ensinado no Alcorão.

O comportamento daqueles assassinos era igual ao dos terroristas atuais como os do Hamas perpetrados no dia 07 de outubro passado. Desprezando vidas pessoais e alheias, esses homens estampam crueldades e ignomínias que estremecem, estarrecem e amedrontam qualquer pessoa decente.

Felipe VI, rei francês, no ano de 1332, programou uma cruzada com o fito de libertar Lugares Santos da Cristandade. Não imaginava encontrar assassinos como aqueles da Síria pelo caminho. Recebeu de Brocardo, missionário alemão localizado na Armênia, aterradora advertência sobre ataques sanguinários que podiam ser perpetrados por homens que empunhavam adagas e punhais sob vestes matando sem piedade os que encontrassem.

"Os Assassinos", escrevia aquele missionário ao rei, "devem ser amaldiçoados e evitados. Eles se vendem, têm sede de sangue humano, matam inocentes por dinheiro e não se importam nem um pouco com a vida ou a salvação. Como o demônio, transfiguram-se em anjos de luz, imitando os gestos, as vestes, línguas, costumes e atos de diversas nações e povos; desse modo, escondidos em pele de cordeiro, submetem-se à morte tão logo sejam reconhecidos".

Os chamados 'assassinos', dos primórdios do terrorismo islâmico, eram homens alterados e sanguinários. Segundo o historiador, Bernard Lewis, comportavam-se daquela maneira em virtude dos entorpecentes que consumiam. 'Hassi', era uma espécie de pedra resinosa seca que alterava a visão e o raciocínio de quem a ingerisse. O termo 'hassassins' (bebedores de hassis) indica, regularmente, o modo de ser e de se comportar dos submetidos ao haxixe, droga que treslouca ações e pensamentos dos seus usuários.

Os homens, portanto, não nascem assassinos. Transformam-se tais quando alteram sua natureza e sua alma. São forçosamente demolidos para serem reconstruídos de forma demoníaca. É preciso degringolar a natureza e a ordem do próprio ser para se atingir o estágio criminal. É necessário um entorpecimento da inteligência e uma catalepsia da vontade para se galgar a fé e a ação terroristas. Nenhum movimento dessa magnitude seria possível sem a prévia destruição da interioridade, sem o 'haxixe' do torpor e sem o torpor do 'haxixe'.

Portanto, o terrorismo praticado, consumido e aprovado por alucinados indica um estágio fenomenológico comportamental revelador: a degeneração nuclear da vida moral e psicológica dos seus protagonistas e defensores. Ninguém galga o terrorismo assassino sem comer a bosta do demônio que pode ser encontrada somente no inferno ideológico mais corroído da terra.

Racionalidade alguma ou motivo algum podem entender e aceitar ousadias assassinas embebidas de terrorismo que tornam alguém capaz de degolar crianças indefesas ao mesmo tempo em que festeja o próprio crime.

Unicamente seres entorpecidos podem virar do avesso a própria alma e se vergar ao torpor da corrosão mais lancinante e inimaginável.

Immanuel Kant (1724 - 1804), o mais iluminista dos filósofos modernos, pretendeu defender a moral e, ao falar do suicídio, fez referência à vida humana incivilizada. "Fomos postos neste mundo\", escreveu Kant, "sob certas condições e para propósitos específicos. Mas o suicida se opõe ao propósito do Criador; e chega ao outro mundo como alguém que desertou do posto; ele deve ser desprezado como um rebelde contra Deus. Logo que nos lembramos da verdade de que a intenção divina é preservar a vida, somos obrigados a regular nossas atividades em conformidade com isso".

Ora, se, deveras, o suicida é um desertor, então o homicida é um impostor.

Os que se retiram do jardim são desertores, os que o esmagam são impostores. Ambos, porém, agem na contramão da vontade divina e fora do lugar criatural. Se no suicídio há desistência, no homicídio há demência. A escola assassina, revolucionária e terrorista ensinou, por sua vez, que um suicida pode ser também um homicida e um homicida, um suicida. Os que matam conscientes de que podem ser mortos, são terroristas suicidas porque matam para morrer e morrem para matar. Já não lhes importa a própria vida nem a de ninguém.

É por isso que os revolucionários matam na mesma proporção e na mesma ignominiosidade dos terroristas e os terroristas matam na mesma proporção e na mesma ignominiosidade dos revolucionários. Revolucionários assassinos e assassinos revolucionários rasgam a ordem da Criação e se põem num lugar transumano.

Faltam-nos estudos para compreender os abismos morais e mentais nos quais nos encontramos. Entorpecidos assassinos rondam os ambientes culturais e educacionais com ideologias e doutrinas que legitimam até o sacrifício de inocentes, a morte de indefesos, o desaparecimento de culturas, tradições e povos. Muitos terroristas, ao serem reconhecidos, suicidam-se, porque obedecem às ordens da entorpecência, incapazes de observar a loucura em que se meteram.

"Na doutrina marxista", continua Kolakowski, "domina o espírito revolucionário: a libertação ou é total e definitiva ou não existe; não existem vias intermediárias; mediante um multiplicar-se das reformas a revolução não pode nem ser substituída nem ser realizada 'em parte': a revolução não consiste na soma das reformas... Regressões culturais determinantes não são todavia impossíveis porque não existe nenhuma lei histórica que garanta à humanidade o progresso ininterrupto: a ideia que o mundo atual seja corrupto tão radicalmente a ponto de tornar impossível qualquer melhoramento e que justamente por este motivo o mundo que a isso sucederá deva trazer consigo a perfeição absoluta e a libertação definitiva, esta ideia é uma das mais monstruosas aberrações do espírito humano: a sã razão sugere ao invés: quanto mais o mundo atual é corrupto, tanto mais longo, difícil e incerto é o caminho que o separa do agoniado reino da perfeição".

Nas veias de qualquer terrorismo, religioso ou marxista, habita, portanto, um maniqueísmo de purificação, uma ansiedade de erradicação de toda dissidência e diversidade. Sua empreitada supõe a demolição de toda moralidade, o estrangulamento de toda ordem espiritual e axiológica. Os que matam inocentes sem pestanejar, sem remorso e sem culpa, assassinaram, antes, sua própria alma.

Urge, desejava G. Chesterton, retornar às fontes sagradas da nossa existência para redescobrir a verdade segundo a qual a justiça e a salvação plena deste mundo não serão alcançadas por meio de nossas soberbas mãos. Aquele que esquecer sua condição de criatura, terminará por resvalar na demência demoníaca na qual o destino é sem retorno e o retorno é sem destino.
*       Em Santa Maria, 03/11/2023

**     O autor é professor de Filosofia