• Fernando Araújo
  • 07/04/2021
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MÚSICA, LINGUAGEM UNIVERSAL

Fernando Araújo

 

A Universidade de Oxford pretende liderar um grande ''reset" mundial no ensino de Música, propondo rebatizar a assim chamada música clássica de 'música branca da era dos escravos', reformar a própria notação musical ( 'sistema colonial de representação'), e por fim cancelar Bach, Mozart e Beethoven por serem parte do tal contexto de  'supremacistas brancos ', ..., enfim, mudar todos estes pontos por causarem  'grande sofrimento aos alunos negros' .

A única coisa que pode 'causar grande sofrimento' aos alunos de outras raças é privá-los do contato com as obras-primas de Bach, Mozart e Beethoven. Entre todos os compositores, Bach é talvez o mais apolítico, e sua obra vai além dos parâmetros da Música em si e chega a ser um híbrido perfeito entre Arte e as assim chamadas 'ciências exatas' – geometria, aritmética, física, astronomia – por conter em si todas as fórmulas, proporções, e até mistérios do Universo.

Em outras palavras, Bach está além de seu tempo e de qualquer tipo de colonialismo. Mozart pode até ser mal interpretado por certas passagens do libreto da ' Flauta Mágica ', principalmente se tiradas do contexto do seu Zeitgeist e dos costumes da época – época na qual vocativos como 'o Mouro de Veneza', o 'judeu', o 'turco', o 'alemão' eram comuns e não tinham necessariamente conotação de preconceito, e na qual a própria imperatriz da Áustria se referia a uma ópera que ela menosprezava com adjetivos como 'una porcheria tedesca!' ...

Mozart era cidadão do mundo e dos compositores o mais cosmopolita, fascinado pela literatura – as Mil e Uma Noites, por exemplo – e por toda a cultura do Oriente, pelas quais muitas vezes deixou-se inspirar, como demonstram os movimentos 'alla turca' da sonata para piano em lá maior e do concerto para violino e várias de suas óperas (Zaide, O Rapto do Serralho, a própria Flauta, entre outras). Mozart era humanista e vivia e compunha sob os princípios do Amor Universal, antítese de qualquer forma de racismo, preconceito, injustiça – tanto é que, até recentemente  (antes do despontar da tal 'cultura de cancelamento') obras suas como As Bodas de Figaro eram regularmente instrumentalizadas a torto e direito como manifestos marxistas... Independentemente de qualquer postura política – pois, na minha modesta opinião, Mozart era também apolítico – a música de Mozart respira e inspira Amor Universal, simplesmente.

E quanto a Beethoven: se ele fosse supremacista de alguma coisa não teria apagado a dedicatória a Napoleão na sua 'Eroica'... Outro que estava muito além da política do tempo, e muito mais absorvido em questões mais profundas e transcendentes. Sua música também respira e inspira Amor, mas também toda a tragédia humana, a dor profunda, a perseverança, a força e a esperança no ser humano ( talvez não seja coincidência que esta crise tenha começado exatamente em 2020, ano de Beethoven).

Assim, toda essa grande música está muito além de qualquer colonialismo, supremacia, muito além do Tempo: é música atemporal. Equivalentes dignos na Arquitetura seriam por exemplo as pirâmides do Egito. Ou será que os doutores de Oxford também pretendem cancelar as pirâmides? Enfim, estas também pertencem a um período tenebroso de escravidão, não é verdade? E diferentemente das obras de Bach, Mozart e Beethoven, foram diretamente construídas por mãos de escravos. Ou tal memória não causa sofrimento?
Privar os alunos não-brancos da música atemporal de Bach, Mozart e Beethoven é não somente uma decisão completamente absurda, equivocada e infundada, mas acima de tudo RACISTA -   racista por parte dos pseudo-acadêmicos, pseudo- professores, pseudo-intelectuais em subestimar o potencial, a sensibilidade e a inteligência dos alunos de outras raças em absorver e aprender da Linguagem Universal destes grandes mestres.
Música é Linguagem Universal e vence todas as barreiras  - de culturas, de raças, de gênero, de religião..., seja um negro spiritual, uma canção em swahili, Bach, Mozart ou Beethoven, a música vai sempre direto ao coração.  Mesmo a notação musical estabelecida tem notas e pausas pretas e brancas e as tonalidades são de todas as cores. Caso os doutores de Oxford estejam realmente bem-intencionados, em vez de cancelarem os grandes mestres, muito mais valeria se simplesmente adicionassem no seu currículo clássicos de outras culturas.  Que tal ' Cultura do Adicionamento ' em vez de ' cancelamento '?
Concordo que o termo 'música clássica ' mereça um 'reset' - afinal, como sabemos, nem toda música 'erudita' pertence ao período clássico.  E o termo 'erudita' considero mais problemático ainda - pois 'erudita ' pode conotar 'elitista',  enquanto Bach, Mozart e Beethoven, apesar de todo o seu refinamento, escreviam bem conscientemente numa linguagem musical acessível às pessoas comuns e não somente a uma elite. (Nas palavras do próprio Leopold Mozart enquanto ensinava o seu filho-prodígio: 'Wolfgang, escreva música que seja acessível tanto aos conoisseurs como aos leigos!'  )

Assim, em vez de substituir-se os termos  obsoletos como música 'clássica ' e 'erudita' por outros piores e aberrações como 'música branca da época colonial', que tal seria 'Música, Linguagem Universal'? 
Enquanto os doutores de Oxford continuam elaborando seus devaneios e supremacias, prefiro continuar com minhas aventuras musicais insubstituíveis por quaisquer de suas teorias... Como a oportunidade de trazer ópera pela primeira vez a uma comunidade Massai num safari do Quênia... onde cada Massai, em sua inocência, não corrompido por quaisquer narrativas e sem nenhum cursos de Música em Oxford, recebe esta Linguagem Universal de forma direta, imediata, humanamente saudável ... sem nenhum 'sofrimento' imputado... com entendimento livre dos delírios e alucinações dos tais 'doutores': o  entendimento simples e direto do coração.  Enfim, com certeza era exatamente este o efeito sonhado pelos grandes mestres. " 

' Fernando Araujo é cantor lírico, vive em Salzburgo,  Áustria, onde trabalha com várias companhias locais e no exterior. Também é pianista preparador de repertório e leciona no Dept. de Ópera da Universidade Mozarteum, Salzburgo. '