• Leandro G.M. Govinda
  • 19/01/2021
  • Compartilhe:

O RISCO DA MODA VEGANA NOS PRESÍDIOS

 

Leandro G.M. Govinda

Em decisão polêmica, uma juíza de Goiânia determinou a soltura de uma advogada que estava presa preventivamente por suspeita de envolvimento com uma organização criminosa. De acordo com a decisão, a detenta era vegana e supostamente não estava recebendo alimentação adequada no presídio, razão pela qual a juíza substituiu a prisão por medidas cautelares diversas.

Antes de mais nada, cumpre notar que as decisões judiciais, como qualquer ato público, estão sujeitas ao escrutínio popular, afinal o poder exercido por magistrados, como os demais poderes estatais, emana do povo. Os processos judiciais são, em regra, públicos justamente para permitir que o cidadão possa acompanhar o trabalho do Poder Judiciário. Agora, esse direito à critica não se confunde com ataques pessoais e ameaças dirigidas a quem que proferiu a decisão, o que é inadmissível em uma sociedade livre.

Sobre a decisão propriamente dita, de fato, não foi acertada. Aparentemente, a juíza entendeu que a advogada presa, por ser vegana, necessitava de um cardápio especial. Não há dúvidas de que o Estado deve prestar assistência às pessoas presas, o que inclui fornecer alimentação suficiente e suprir as suas necessidades pessoais (artigos 10, 12 e 41, I, da Lei de Execução Penal). Isso não significa que o preso tem direito de escolher o que vai comer, afinal o refeitório da prisão não é um restaurante cinco estrelas com serviços à la carte. Perceba-se que a lei empregou a expressão “necessidades” pessoais e não “preferências” pessoais. O dicionário Michaelis ensina que “necessário” é aquilo “impossível de ser dispensado; obrigado a ser cumprido, inevitável”, ou seja, algo imperioso, impositivo. No caso da alimentação, algumas pessoas têm alergia a determinados alimentos, como o glúten. Essas pessoas, quando ingerem esse componente, têm reações que vão desde um desconforto intestinal até vômitos e diarreia, o que certamente pode colocar em risco a sua saúde. Nesse caso, pode-se dizer que é necessário oferecer alimentação sem glúten para um detento com essa condição. Mas repare-se que a pessoa não escolhe ser alérgica ao glúten. Essa alergia é inerente a determinados organismos humanos.

Já ser vegano é uma opção para aqueles que acreditam que a alimentação baseada unicamente em recursos vegetais proporciona mais qualidade de vida, além de não agredir o bem-estar dos animais. Só que essa opção, como tantas outras na vida, é própria das pessoas livres. Os grupos defensores de direitos humanos precisam entender que a pessoa presa não tem apenas a sua liberdade cercada. Enquanto preso, o sujeito sofre restrições de todo tipo e precisa se adaptar. Por exemplo, um cidadão que estava acostumado a dormir em uma cama king, com colchão ortopédico e travesseiros com plumas de ganso certamente terá dificuldades para dormir em uma cama de presídio e, como se sabe, noites mal dormidas podem causar danos à saúde. Igualmente, um praticante assíduo de natação, enquanto estiver preso, não poderá exercitar o seu nado, ainda que natação seja um dos esportes mais benéficos para a saúde humana. Eu mesmo tenho o hábito de tomar todos os dias de manhã um suco composto por cerca de 30 ingredientes, entre frutas, legumes, verduras e sementes. Esse suco custa caro e dá um trabalho danado para preparar (escolher os ingredientes no supermercado, lavá-los cuidadosamente, cortá-los em pequenos pedaços, separá-los em porções, batê-los no liquidificador e depois limpar toda a sujeira na cozinha, sob os olhos vigilantes da minha esposa), mas o médico nutrólogo que consultei garante vida longa e saudável para quem tomar esse suco diariamente. Apesar disso, em uma prisão, dificilmente encontraria um carcereiro disposto a preparar todos os dias esse suco especialmente para mim.

Da mesma forma, um vegano não tem nenhuma legítima expectativa de ser alimentado com um cardápio cuidadosamente balanceado como estava acostumado fora do cárcere. Aliás, causa estranheza um vegano ter dificuldades para se adaptar à dieta na cadeia. Não sei como é o cardápio no sistema prisional em Goiás, mas é improvável que falte alimentos de origem vegetal. No começo da minha carreira como Promotor de Justiça, fiscalizei os presídios na região metropolitana de Florianópolis e nunca ouvi um preso reclamar da falta de arroz, feijão, pão ou batata. Os itens escassos eram carne, frango, peixe e musse de chocolate, mas isso não deveria ser um problema para um vegano. De qualquer maneira, a ausência de um cardápio especial não seria motivo para conceder liberdade ao preso, assim como também não seria lícito soltar um detento porque ele não consegue dormir na prisão ou porque ele não pode praticar o esporte como usualmente fazia fora da cadeia. Se a pessoa quer conservar os seus hábitos, isso é apenas mais um motivo para não cometer nenhum crime, a fim de evitar a clausura, porque, uma vez presa, o cidadão deixa de gozar de certos privilégios próprios das pessoas livres, entre os quais escolher a sua dieta.

A magistrada de Goiânia até poderia estar preocupada com a saúde da detenta. O que talvez lhe passou despercebido é que a deterioração da saúde da advogada presa não foi causada pelo Estado, já que, ao que tudo indica, não havia outros presos em estado famélico nesse estabelecimento prisional. A saúde dessa detenta pode ter se debilitado porque ela se recusou comer o que lhe era servido. Daí a concluir que o Estado deveria satisfazer o exigente paladar da presidiária é um perigoso salto de complacência com pessoas que nem de longe merecem tamanha distinção.

 

* Artigo enviado ao site pelo autor. Leandro G.M. Govinda é Promotor de Justiça em Santa Catarina e aluno do Mestrado em Direito na Universidade George Washington em Washington D.C. Formou-se em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina e especializou-se em Direito Tributário pela Universidade do Sul de Santa Catarina. Foi pesquisador do CNPq, Técnico e Auditor-Fiscal da Receita Federal e Procurador da Fazenda Nacional. Ex-Professor da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL) e da Escola do Ministério Público. Escreveu artigos publicados na Revista Tributária e de Finanças Públicas, na Revista Fórum de Direito Tributário, na Revista dos Tribunais (RTSUL), na Revista Eletrônica “Jus Navigandi” e no portal “Meu Site Jurídico”.