• C. S. Mourão
  • 14/08/2025
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Um TBT de Lewis para Chesterton

 

C. S. Mourão 

             Recentemente vi uma postagem de um amigo em redes sociais onde ele brilhantemente desnudava a velha máxima adesista "se não pode vencer seus inimigos, una-se a eles", expondo o que ali sempre se escondeu: um viés diabólico que lentamente se apropria de símbolos caríssimos à humanidade, culminando no "perenialismo" de René Guénon (entre outros) – que, ao fim e ao cabo, é para a filosofia o que a noite é para os gatos: apenas um jeitinho de deixá-los todos pardos. Para sustentar seu contraponto, o inteligentíssimo pastor (sim, esse amigo a que me refiro é um cuidadoso pastor) trazia à esgrima ninguém mais, ninguém menos, que a dupla cristã G. K Chesterton e C. S. Lewis – dos quais sou um devotado, ainda que medíocre, leitor.

A quem não sabe (muito embora todos devêssemos saber) esses dois cavalheiros estão entre os maiores e melhores escritores e pensadores britânicos do século XX (e muito seguramente de toda a história!), amplamente conhecidos por trabalhos literários com abordagens diretas ou indiretas de temática filosófica, religiosa, social e comportamental. Suas obras, fossem elas em prosa ou verso, ficção ou não, ensaios seriíssimos ou bem humoradas anedotas, todas convergiam para um mesmo ponto em comum: Deus!, e o Homem por ele criado. Seja de “Ortodoxia” e “O Homem Eterno”, de Chesterton; a “Cristianismo Puro e Simples” e “A Abolição do Homem”, de Lewis, é possível perceber uma nítida confluência de pensamento (assim como na série de Padre Brown e “O Homem Que Era Quinta-Feira”, de um lado, e “As Crônicas de Nárnia”, do outro). A identidade – ou, melhor dizer, continuidade – é tão grande que se poderia pensar que eles foram amigos, e do tipo que se conheciam pessoalmente (pois assim é que era antigamente). Mas eles não eram. Não porque fossem antipáticos um ao outro, mas, sim, simplesmente por uma breve questão de tempo: Chesterton, nascido em 1874 e morto em 1936, “existiu” antes de Lewis (1898-1963), sobretudo antes da conversão deste último ao cristianismo. De fato, apesar da diferença etária não tão gigante (24 anos é pouco nos dias atuais; mas há mais de cem anos era bastante coisa), o grosso [ou, melhor dizendo, “o fino”] da produção intelectual-literária de Chesterton é do início do século XX, até o final dos anos 20 de então, sendo que Lewis, uma geração mais novo, só começou a despontar no início dos anos 30. Logo, e para a frustração de muitos ansiosos espectadores, por essas coisas do destino –, ops, de Deus! – eles não tiveram amizade. (No entanto, como Deus não escreve errado por qualquer linha que o seja, Lewis era #BFF do último hobbit vivo, Sir Tolkien. Mas isso é fato para outra boa estória, ainda que seja a mesmíssima história...)

Pois a partir disso, desse desencontro, lamentável somente pela minha pequenez, cometi a ousadia, quase herética, de confabular uma cartinha que, talvez, poderia muito bem estar sendo escrita nos dias atuais por Lewis ao mui simpático e bonachão compatriota rotundo. (E claro que não seria, em se tratando deles, de um mero e-mail ou mensagem no direct do “Insta”, mas uma missiva completa, com selo, carimbo e tudo). E ficou mais ou menos assim:

 

"Oxford, noutro tempo e espaço,

Em um agosto absurdamente líquido:

 

Meu caro e estimado Gilbert,

Sei bem que as cartas do Paraíso não costumam fazer escala na Terra — mas receio que, para preservar alguma réstia de sanidade, precise infringir uma ou duas leis da eternidade e confessar-te umas tantas perplexidades da hora presente.

Disseste outrora que “o mundo moderno é cheio de velhas virtudes cristãs enlouquecidas”. Permita-me ir além: estas virtudes agora, para além de enlouquecidas, se perderam mais que aquele inklink que abusou de hidromel e se engasgou com o old toby Tais virtudes parecem que fumaram maconha (dizem!), tomaram ácido, fundaram ONGs, e vivem pedindo doações via Pix – e isso tudo é fato!, mas não necessariamente nessa ordem...

Gilbert, o Ocidente – esse velho cavalo cansado que outrora cavalgava orgulhoso entre as catedrais, as bibliotecas e os pubs – hoje cambaleia, não por ter perdido a força, mas por ter perdido o sentido. E, pior, sob o pretexto de defender o homem, tenta a todo o momento aboli-lo por completo. Na realidade, hoje tudo é mais importante do que qualquer homem, até um ponto em que o Homem não importa (e eu não sei mais dizer se quem prega isso é homem ou o Q!)...

Lembras da tua Democracia dos Mortos?! Foi enterrada sem velório! Nossos avós foram silenciados por, pretensamente, “terem morrido na década errada” – esse foi o libelo [ainda existe essa palavra?]. E enquanto os heróis de agora morrem de overdose, a tradição, a “votação dos falecidos”, foi substituída pelo princípio do prazer dos vivos, o que nada mais é do que adições de “amigos” no Instagram, curtidas no TikTok e rolagens de Reels.

Nesse ponto tu podes me perguntar por onde anda a saudade e a autoridade milenar da razão, da revelação e do senso comum. E eu só posso responder que, pelo menos da última vez que as vi, a primeira anda de bar em bar, ao passo que a última, juntamente com o Homem [eu já nem sem mais se é com “h” minúsculo, que dizer maiúsculo] foi sumariamente substituída por decisões judiciais muito mais preocupadas com a semântica dos emojis, e elaboradas para virar virar memes [não me peça para explicar isso, caro amigo], do que para fazer verdadeira Justiça. Aliás, o fundamento bem comum agora significa o prazer da minoria – mas não pode ser uma minoria muito pequena, porque aí se chega no indivíduo, e, assim como uma andorinha não faz verão, um imbecil só não ganha eleição [foi o que eu ouvi de um senador (ou terá sido de um padre ou de um uber? Enfim, agora não lembro, caro amigo...)].

E há um novo tipo de tirania, Gilbert: a tirania do sentimentalismo. Disfarçada de compaixão, essa usurpadora reduz a alma humana à sua condição mais estreita — suas inclinações, seus desejos; em verdade, sua mais virílica concupiscência. O homem moderno exige que sua biologia se curve à sua biografia – que é escrita por ele próprio ele próprio, óbvio. O “ser”, não importa! O que importa é tão somente o “querer”. E quanto mais próximo dos genitais é esse sentimento de querer, mais ele é tido por nobre, a ponto de ser, até mesmo, destacado em apresentações formais... E é claro que não pode ser um sentimento comum. Quanto mais extravagante o for, mais lattes ele deixa o curriculum. Não te ofendas, amigo, se fores debater em Cambridge com alguém cujo título de apresentação consista em anunciar estranhas façanhas que gosta de fazer na alcova. Isso é, para eles, uma credencial importante. Acho que aprenderam com os cães, que iniciam relações sempre por um processo rino-anal. Então, apenas sorria de volta, continue caminhando, o cumprimente e, claro, mantenha a devida distância para evitar farejadas grosseiras. E não dê bola, Gilbert, porque a maioria deles tende a não se reproduzir. Eles passarão, tu passarinho. São pessoas apenas com genitais, não possuem peito.

E sobre isso — agora que posso te falar livremente — confesso que aquele título, “O Homem Sem Peito”, no meu livro “A Abolição do Homem”, foi, sim, uma pequena homenagem velada a ti, Gilbert. “Peito”, como sabes, é onde moram as virtudes, as afeições ordenadas, a coragem civilizadora acima de tudo. E “Chester”, esse nome que carrega peito até na etimologia, foi em mim símbolo daquele que lutou com humor e espada contra as sandices do niilismo. Em ti, o peito cristão ainda palpitava. E isso inspirou o meu peito. Gostaria que isso houvesse nos tempos atuais, mas agora eles estão desnudos, ou de cropped, e ali só respira a vaidade, o aliado erudito daquilo que habita a virilha.

É, Gilbert... As quintas-feiras de antes não são mais as suas. Tolkien, nosso mui amigo John – o querido inkling que não era quinta-feira, mas a semana toda! –, ao ver isso tudo, teria dito que “Sauron venceu!”. E não com exércitos, mas com editais de concursos públicos e conferências acadêmicas. A espada não defende mais, só ofende; o cajado apenas sustenta o anacronismo, a velharia; e o anel de poder foi partilhado entre uma pequena elite para a todos governar. Na mão do povo sobrou apenas o cachimbo – e não há mais old toby!, mas somente a erva venenosa. Ah, Gilbert, não tenho mais dúvidas!, estamos diante da completa abolição do homem. E os orcs estão urrando de prazer (e não só do princípio!).

Não há mais como voltar atrás. A lei, já não natural, agora é líquida. O juiz — outrora servo da norma — avocou tanto poder a si que se tornou demiurgo. A justiça, que era apenas cega, agora é careca e – pasme! – cabeluda. “Direitos”, conforme o vai-e-vem virílico das minorias qualificadas, surgem e desaparecem no mesmo instante. Aliás, mais surgem do que desaparecem; e deveres não se criam – ao menos não para os donos da virilha, é claro. Ninguém deve nada, mas todes podem tudo. No final, às vezes até acontece de suceder justiça para uns e outros – mas isso só, é claro, por acidente – ou por acinte (eles dizem).

E o mais triste, meu amigo, é que essa eterna sexta-feira se apresenta com uma face muito redonda, benigna, sorridente e terapêutica. O Inferno descobriu que a melhor forma de vencer os anjos era vestir-se de anjo da empatia – pois o disfarce é ferramenta que vem de baixo. É o “Sextou!”.

Por isso escrevo. Não para lamentar — pois sei que, no fim, como bem escreveste, a cruz voltará a florescer! Quero apenas avisar e registrar, num tom meio cômico e meio desesperado, que, realmente, tua pena era profética, e que tua teologia, com joelhos sujos de chão, agora anda limpinha e com tornozelos depilados à mostra... No final, tenho certeza, venceremos todos, mas somente uns poucos de nós saberemos o quanto nos custou isso tudo.

Saudades de nossas conversas sobre cerveja, paradoxos e encarnação. Quem sabe um dia, num pub celestial (ou infernal, se nos deixarem ingressar), possamos rir juntos das absurdidades destes séculos e brindar com hidromel e old toby o triunfo da verdade. É só marcar!

Do velho companheiro de fé e fantasia,

Clive Staples Lewis

P.S. John já antecipou que não irá no encontro e que não está nem aí para nós, pois – disse – tem mais o que escrever.”

 

...E não se localizou uma única mancha de lágrima nela.

Caxias do Sul, 07/08/2025.

C. S. Mourão.