• Giuseppe Caonetto
  • 18/01/2023
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Arapucas

 

Giuseppe Caonetto

       Eu parei de atormentar os passarinhos no final de minha adolescência. Perseguia-os com estilingues e arapucas. A decisão foi tomada no dia que a arapuca caiu sobre a asa direita do pombo, causando-lhe fratura. A minha dor foi imensurável. Eu sempre libertava os aprisionados, após a minha molecagem. Naquele dia, isto não foi possível. Levei-o para casa e dei-lhe todos os cuidados, mas ele, fiel à causa, não quis se alimentar e, depois de alguns dias, fez seu último voo para o céu da passarinheza, em forma de pluma. Ao seu corpinho dei dignidade, sob a sombra de um pé de cedro.

A arapuca é uma espécie de armadilha cuja estrutura se assemelha a uma gaiola, fabricada com varetas ou gravetos de madeira, ou talas de bambu, colocadas em sobreposição, com as superiores em tamanho menor que as inferiores, em forma de uma pirâmide sustentada por amarração feita com fibras vegetais ou arame. Sua finalidade: aprisionar animais, principalmente pássaros, atraídos pelos alimentos colocados como isca.

Imprescindível, para seu bom funcionamento, que o disparador não falhe. Por isso, precisa ser bem construído, com a escolha certa dos gravetos, preferencialmente leves, que irão servir de base, e do ramo que servirá para a sustentação da arapuca, ligada à base. Este deve ser resistente e flexível.

Na minha atividade artesanal, consumia parte de meu tempo preparando as tiras de madeira, cortadas no tamanho ideal. Para a construção do disparador eu utilizava ramos dos cafezais. O alvo: as pombas e outros pássaros que frequentavam as roças de meu pai e de vizinhos, principalmente na época da colheita de grãos (amendoim, milho, feijão, arroz).

Para o êxito da armadilha, o segredo consistia em conhecer as preferências de cada tipo de pássaro e, assim, acertar a escolha da isca. Não adiantava, por exemplo, colocar grãos inteiros de milho para atrair pássaros pequenos. Era preferível o uso de quirera de milho ou de arroz. A preparação do ambiente também era importante, de forma que a arapuca deveria ser armada sem deixar vestígios no ambiente. Assim, após o engatilhamento, eu costumava utilizar folhas secas dos cafezais ou de outras árvores, recolhidas na mata, para camuflar as pegadas ou outras marcas que pudessem comunicar às aves os propósitos nada amigáveis da disponibilizada alimentação.

A rigor, eu travava com os pássaros uma guerra de informação e desinformação. Visando a sua captura, buscava conhecê-los e, para isso, os observava, vigiava, pesquisava, estudava. Por outro lado, quanto mais informações eu obtinha, agia de forma cada vez mais criativa e astuta, com a utilização estratégica de recursos voltados à ocultação das informações que revelassem o perigo.

Como exemplo, lembro-me que no início de minhas atividades terroristas (sim, eu era o terror dos pássaros) punha as armadilhas em lugares mais abertos, por acreditar que a ausência de obstáculos à visão dos voadores os atrairia. Com o tempo, dei-me conta de que, ao ver as horríveis cenas de aprisionamento de seus semelhantes, desesperados sob a arapuca e buscando inutilmente uma saída, a passarinhada passava a evitar aquele local, impondo-me seguidas derrotas, o que me fez mudar as estratégias, as quais não revelarei neste texto. Pode ser que algum menino o leia, e não quero contribuir para a formação dos black blocs do futuro.

O que me motivou a escrever este artigo foram os últimos acontecimentos nas terras tupiniquins, mais precisamente em Alexandrópolis, a nova capital da Banânia. Não me parece que as ocorrências resultaram de um grande plano de retomada dos poderes da república e blá blá blá, como repetidamente veiculado pelos velhos e corrompidos instrumentos do jornalismo, mas sim, de uma arapuca estrategicamente armada pelos inimigos do pombal. Os pombos, ingênuos, queriam apenas a vida em liberdade nas roças, onde encontram seu alimento, fazem suas festas, arranjam namorada, constroem ninhos.

Ao observar as imagens transmitidas por perfis nas redes sociais, principalmente aquelas que nunca serão veiculadas pelos órgãos da velha imprensa, lembrei-me de um artigo publicado pelo inigualável Percival Puggina, um dos mais lúcidos pensadores do nosso tempo, membro da Academia Rio-Grandense de Letras. No artigo publicado no dia 8 de junho de 2022 sob o título Cuidado, é arapuca!, disponível no sítio do autor na Internet, Puggina faz referência à ingênua crença (o autor a classifica acertadamente como tola) de que o Estado, por meio de suas instituições, é fonte de bondades, apenas. Nessa desinformação, diz o autor, “tantos se deixam manipular por certos detentores de poder, indivíduos que jamais seriam convidados para jantar com a família de quem os conhecesse”.

Na sequência, Puggina faz referência ao livro Pombas e Gaviões, lançado em 2010, em especial à advertência de capa: “Os ingênuos estão na cadeia alimentar dos mal-intencionados”. Aliás, a imagem da arapuca que enfeita este texto é a mesma utilizada pelo autor gaúcho para ilustrar seu belo artigo (endereço no final).

E o que liga os vícios brasileiros, em especial aquele de atacar os efeitos e não combater a causa, aos atos acontecidos no dia 8 de janeiro? As arapucas. Sim, o Brasil é o país das arapucas, uma nação onde os predadores são libertos de suas gaiolas e as pombas atraídas para armadilhas cada vez mais elaboradas, seja por meio de narrativas midiáticas, seja por meio de maquininhas mágicas feitas e mantidas em absoluto segredo.

Não adianta espancar os fatos com injúrias ou bofetadas, como escreveu Puggina em novo artigo, tratando do mesmo tema. Aliás, o novo texto, publicado neste 10 de janeiro, traz como título Os ingênuos e os mal-intencionados, em nova referência à advertência de 2010, com a qual concordo plenamente. Recomendo a leitura e indico, no final, os endereços.

É chegada a hora de a sociedade brasileira despertar e, talvez, os tempos difíceis que virão contribuam para afugentar a profunda sonolência que toma conta da consciência de significativa parcela dos brasileiros. E a reviravolta (não revolta nem revolução) dos manés somente ocorrerá com a atuação política, especialmente no ambiente em que cada um atua, com seus familiares, amigos, colegas, conhecidos. O momento é de firmar como principal estratégia política a identificação e o desarme das arapucas.

Esperemos que a nova composição do Congresso Nacional entenda o momento e dê ao povo brasileiro a oportunidade, talvez a última, de construir um futuro.

*         Artigos de Percival Puggina mencionados:

1. Cuidado, é arapuca!, de 08/06/2022, no endereço:
https://www.puggina.org/artigo/cuidado,-e-arapuca!__17603

2. Os ingênuos e os mal-intencionados, de 10/01/2023, no endereço:
https://www.puggina.org/artigo/os-ingenuos-e-os-mal-intencionados__17724 

**      Nota do editor de Conservadores & Liberais: O autor, Giuseppe Caonetto, a quem agradeço o envio deste belo e criativo texto, é paranaense de Paranvaí, licenciado em Letras (Unespar, 1989), com Especialização em Língua Portuguesa (Unespar, 1992). Bacharel em Direito (UENP, 1997), poeta e escritor com várias obras publicadas.