Dagoberto Lima Godoy
Há quem se mostre perplexo diante das atitudes de Donald Trump em relação ao Brasil — impondo tarifas elevadas, criticando o governo Lula e até censurando abertamente decisões do Judiciário nacional, como se estivesse se intrometendo em assuntos internos. Para entender esse movimento, é preciso ir além da superfície e enxergar o cenário mais amplo: o mundo vive hoje uma profunda cisão ideológica.
Mesmo num ambiente repleto de blocos econômicos e alianças políticas, é possível distinguir com nitidez dois grandes polos em formação. De um lado, consolida-se um bloco de poder que promove a centralização política, econômica e cultural, assumindo diferentes rostos conforme a região.
Na Europa Ocidental, essa força se expressa por meio de uma burocracia supranacional — como a União Europeia — que busca impor consensos morais e políticos uniformes sobre culturas diversas. Suas elites social-democratas e liberais-progressistas defendem o intervencionismo estatal, o esvaziamento das tradições e uma cidadania cada vez mais baseada em princípios abstratos do que em vínculos históricos e nacionais concretos.
Nos Estados Unidos, a mesma lógica se materializa na ala dominante do Partido Democrata, com sua ênfase em políticas identitárias, ampliação do poder regulador, controle da informação por meio de grandes plataformas privadas e reeducação cultural por vias institucionais. A esse conjunto somam-se magnatas como Bill Gates, George Soros e outros expoentes do globalismo corporativo, que, sob o pretexto de filantropia e inovação, atuam na formulação de políticas públicas globais, financiamento de agendas ideológicas e fortalecimento de instituições supranacionais. Seu poder deriva menos do voto popular e mais do capital acumulado, das redes de influência e da capacidade de moldar narrativas em escala planetária.
No Oriente, esse projeto centralizador adquire formas ainda mais explícitas. A China comunista combina vigilância digital em massa, repressão política e expansão econômica travestida de parceria pacífica. O Irã subjuga seu povo sob um regime teocrático e exporta ideologia e terrorismo. A Coreia do Norte representa o extremo da tirania estatal.
A esse bloco soma-se a Rússia de Vladimir Putin — cuja posição é ambígua. Apresenta-se como defensora da tradição e da soberania nacional, mas pratica autoritarismo, culto personalista, repressão à dissidência e manipulação midiática. No plano internacional, Moscou atua para enfraquecer a hegemonia liberal do Ocidente, aliando-se taticamente à China e ao Irã. Apesar de não compartilhar o discurso progressista, converge com esse eixo centralizador na supressão das liberdades individuais e no combate à ordem democrática clássica.
Esses modelos, ainda que diversos em aparência, compartilham um denominador comum: a concentração de poder, o desprezo pela autonomia popular e o controle da sociedade como instrumento de engenharia social. Não formam uma aliança formal, mas sim uma frente funcional, unida pela oposição ao modelo ocidental baseado na liberdade individual, no pluralismo institucional e na descentralização do poder.
Ainda assim, convém notar que, embora atuem em convergência estratégica, esses atores dificilmente nutrem lealdade recíproca. Olham uns para os outros, na melhor das hipóteses, como companheiros de viagem — aliados temporários rumo a um objetivo comum, mas com ambições hegemônicas próprias. Cada um, a seu modo, espera que, no desenlace do confronto global, possa prevalecer sobre os demais e impor sua própria versão de ordem. O que hoje parece unidade, amanhã pode desdobrar-se em rivalidade feroz, pois o elo que os mantém juntos não é a afinidade profunda, mas a oposição ao outro bloco de poder, ainda embrionário, um movimento global em sentido oposto — o polo soberanista e libertário.
Esse bloco defende a autodeterminação dos povos, a responsabilidade individual e o direito das nações de preservarem suas culturas sem interferência de elites transnacionais nem vigilância ideológica disfarçada de progresso moral.
É nesse novo contexto que despontam figuras como Donald Trump e Javier Milei. Ambos, a seu modo, simbolizam a resistência à centralização globalista. Trump, com sua política de “America First”, não é propriamente um idealista da liberdade universal. Sua prioridade é restaurar o poder e a prosperidade dos Estados Unidos, enfraquecidos — em sua visão — por gestões democratas e compromissos multilaterais excessivos. Já Milei, na Argentina, ergue a bandeira do libertarismo radical contra décadas de populismo estatizante e alianças com regimes autoritários latino-americanos. Sua eleição representa um marco simbólico na América Latina: a primeira vitória explícita de uma agenda que combina liberdade de mercado, soberania nacional e recusa frontal à burocracia internacional.
O Brasil, por sua vez, tornou-se personagem central nesse embate.
Sob o comando do PT, o país vem sendo reposicionado no tabuleiro internacional como peça auxiliar do bloco estatizante e autoritário. Adoção de pautas globalistas sem debate interno, aparelhamento institucional, manipulação das cortes superiores, neutralização das Forças Armadas e subordinação do Congresso a interesses fisiológicos são traços de um projeto hegemônico de longo prazo. As alianças políticas com regimes como Venezuela, Cuba e Nicarágua, e a reaproximação com China, Rússia e Irã, deixam clara a guinada estratégica.
A oposição, embora numerosa, ainda carece de articulação e projeto. Em torno de Jair Bolsonaro reuniu-se a resistência conservadora, marcada tanto por sua força simbólica quanto por suas limitações operacionais. A trajetória de Bolsonaro revelou, no entanto, uma inquietação difusa mas profunda, compartilhada por milhões de brasileiros — e por outros povos — diante do avanço da centralização autoritária.
É com vistas ao quadro global que Trump age. Ao aplicar sanções simbólicas contra o Brasil de Lula, seu gesto vai além da economia: é uma sinalização geopolítica. Os Estados Unidos nunca se importaram muito com a América Latina. Mas, agora, um Brasil alinhado à China, Rússia e seus aliados representa ameaça à estabilidade da região e ao equilíbrio estratégico do Ocidente. Ao criticar o Governo e o Judiciário brasileiro, e até mesmo ao impor tarifas exorbitantes ao país, Trump não visa interferir diretamente, mas marcar posição: os Estados Unidos, ao menos sob sua liderança, não apoiarão — para dizer o menos — regimes que, sob verniz democrático, avançam na erosão das liberdades fundamentais.
Além disso, Trump compreende que preservar a hegemonia americana no mundo exige contrariar o avanço das potências rivais e dos projetos globalistas que diluem a soberania nacional — inclusive a dos próprios Estados Unidos. Sua política externa não se ancora apenas na retórica nacionalista, mas também na convicção de que a liderança americana deve ser reafirmada com autonomia, firmeza e disposição para agir fora das amarras de organismos multilaterais que já não servem aos interesses nacionais. Em sua visão, conter a expansão da influência chinesa, dos conglomerados transnacionais progressistas e de seus aliados ideológicos é parte essencial da missão de restaurar a grandeza americana.
Os gestos de boa vontade de Trump com o governo de Milei reforçam essa leitura. A Argentina, antes parte do mesmo eixo bolivariano que seduz Brasília, agora se desloca para o campo soberanista. Esse movimento repercute além do Prata. Pressiona o Brasil, inspira outras nações e sinaliza que há alternativas reais ao dirigismo global e à tutela das nações por elites transnacionais.
Tudo faz crer que não é só o Brasil que preocupa Trump, mas, sim, o conflito que se desenrola globalmente, uma disputa profunda e estrutural:
• entre centralização e liberdade,
• entre dirigismo e livre iniciativa,
• entre hegemonia global e autodeterminação dos povos.
E, nesse jogo de forças, o Brasil — queira-se ou não — está no centro do tabuleiro.
É campo de batalha.