Adriano Alves-Marreiros
The book is on the table
(Brocardo jurídico inglês criado no Brasil)
Nunca advoguei, nunca assessorei e nunca sequer atuara na área jurídica, exceto uma dúvida aqui ou ali de um comandante, até o dia em que, como Capitão do Exército, formado na Academia Militar das Agulhas Negras, fui aprovado no concurso para Promotor de Justiça Militar, em 1999 e tomei posse, sendo automaticamente demitido do Exército, a contar da posse.
No primeiro dia de trabalho é verdade que bate um desespero: será que vou conseguir atuar na prática? Mas foi aí que comecei a perceber que a suposta desvantagem era uma vantagem imensa: ter atuado juridicamente, e sem independência funcional, em um país em que a insegurança jurídica começava a ficar, por demais, segura de si, poderia ter comprometido o Promotor-raiz que existe dentro de mim. Poderia ter seguido o perigoso canto da sereia e perdido o contato com a realidade e a Sociedade, optando pelo mundo de Alice e por alguma oligarquia jurídica. Poderia ter corrompido a minha crença naquele tal Todo Poder que só emana do povo. Se bem que... isso seria difícil: sempre fui capaz de dizer não, desde pequeno. Mas foi melhor... Sei lá...
E aí comecei a trabalhar e comecei a acumular um desprezo crescente pela tal de jurisprudência. Lembro de interromper uma colega com quem debatia uma questão jurídica: “prefiro a SUA opinião jurídica! Tenho profundo desprezo pela jurisprudência”. Chocada, ela tentou reagir e tive que explicar: “Se a jurisprudência aplicar o que está na Lei, ela pouco acrescenta. Se ela disser o contrário da Lei, ela é inconstitucional ou ilegal[1]”. “Mas e se a lei for injusta?”. “Ela será injusta pra você mas não pra maioria que é representada pela maioria do parlamento que a fez ou que não a mudou. A Lei é fruto do consenso, gostemos dela ou não”. “Mas pode ser inconstitucional”, disse ela. “Sim, e aí ela deixa de ser aplicada por causa de uma Constituição cujos artigos originais ou de emendas exigiram consenso ainda maior: a lei continua não sendo substituída pela vontade do julgador...”
Enfim, sugeri a “revolucionária” idéia de que o poder emana do povo e em seu nome é exercido. Isso pareceu chocá-la ainda mais e prosseguimos na discussão sem que ela jamais dissesse qual era a opinião dela: só queria falar de tribunais, relatores, acórdãos, ministros, ementas...
Quando falou nos tais “leading cases”, quis também entrar no inglês e apelei pro clássico “The book is on the table”. Como sua expressão atônita sugeria indagar de que book eu estava falando, apontei pra Constituição e pedi para ela me mostrar em que artigo era autorizado que se deixasse de aplicar a lei por não gostar dela. Aí ela pretendeu dar o cheque- mate, dizendo a frase que eu já ouvira de certa pessoa em sessão: “se fosse só aplicar a Lei ou a Constituição, não precisaria de juiz: bastava colocar no computador”. Tive então que dar a mesma resposta que dera naquela citada sessão: “Quem fala isso, ou não sabe nada de informática ou de Direito. Então sugiro assistir umas aulas básicas... de informática, claro!” Mas, claro que essas pessoas não fizeram essas aulas.
Depois disso, várias pessoas como essas apoiaram, entusiasmadas e ridicularizando os meus protestos, as súmulas vinculantes, efeito vinculante em Ação Declaratória de Constitucionalidade, em Ação Declaratória de Inconstitucionalidade, modulação (pra diminuir um pouco o caos causado pela insegurança jurídica, diminuindo críticas) e as absurdas “mutações constitucionais” tão íntimas de um tal neoconstitucionalismo, algo descolado e cool. Com sua visão revolucionária, ele vai muito além da crítica que sofre, de fazer da Constituição o que o julgador quer que seja: parece ter a visão de que a Constituição nunca é o que a Sociedade quis que fosse, característica que seus defensores orgulhosamente chamam de “ser contramajoritário” – o que, junto com as anteriormente citadas, cada vez permitem decidir mais contra legem e irrecorrivelmente – e mais se distanciam, realmente, do que quer a maioria: pobre Democracia...
Aberta a brecha, vai-se a represa e em suas águas revolucionárias se afoga muita coisa. Aí começaram a exercer o poder Executivo (ao substituir o administrador na análise de conveniência e oportunidade dos atos administrativos) e o Poder Legislativo (ao exigir aqui elementares ectoplásmicas[2] quando não se queria aplicar um tipo penal em um caso, ao inventar ali benefícios no cumprimento de penas por bandidos sem previsão legal, ao anular acolá júris aplicando nulidades fora das elencadas exaustivamente na Lei, ao anular alhures condenações de corruptos por causas de nulidades criadas por jurisprudência depois de sua ocorrência, ao reconhecer, em outro advérbio de lugar que me foge, a superioridade de regimentos internos e resoluções sobre a Constituição e, até mesmo, ao passar por cima da reserva legal em matéria de crime).
Detesto admitir a derrota, mas, pelo jeito, eu estava errado, a minha colega venceu. Se não segundo a Lei e a Constituição, ao menos segundo a jurisprudência... Ela deve estar feliz – agora os juízes, promotores e até defensores poderão legislar e governar e, com isso, os perigos do voto direto ficarão minimizados e as pessoas estarão protegidas das suas perigosas liberdades, claro, tudo em nome de um bem maior, seja lá qual ele for.
Tem gente boa que me fez sofrer
Tem gente boa que me faz chorar
Zero
* Adriano Alves-Marreiros é Cronista com trânsito em julgado, mas podendo deixar de ser por decisão jurispridencial.
** Texto publicado originalmente no portal Tribuna Diária em 5 de junho de 2020
[1] Tá bom, Irmão Sílvio Munhoz , a função da jurisprudência seria “conferir “segurança jurídica”, como ocorre em outros países, corrigir os juízes que atuam errado, contra a lei ou fora da Lei”. Não discordo que ela tenha lá o seu valor... Lá...aqui: raramente...
[2] Não é incomum que, no Direito Penal comum, alguns pretendam que, para a tipificação de um crime, seja necessárias mais condições, mais coisas, que as que constam das elementares do tipo. Sempre aparece o argumento de que está implícito, de que o bem jurídico tutelado, que seria o do capítulo, do titulo, não foi efetivamente atingido. São exigidas elementares que não estão escritas, que não são sequer implícitas. Como dissemos alhures, em alguma nota de rodapé, Elementares Ectoplásmicas[2] são aquilo que não é elementar do tipo no mundo material, positivado, mas que alguns parecem conseguir ver com possíveis poderes psíquicos em um universo paralelo, no mundo espiritual ou, quiçá, no Duat egípcio, a exemplo do ânimo calmo como elementar em ameaça e a exigências próximas à leitura do pensamento do agente na prevaricação. (ALVES-MARREIROS, Adriano. FREITAS, Ricardo. ROCHA, Guilherme. Direito Penal Militar- Teoria Crítica & Prática. 1a Edição, Editora Método. São Paulo, 2015. Direito Penal Militar-Teoria Crítica & Prática. Editora Método. 2015. pp. 1002-1003.