• Genaro Farias
  • 06/04/2016
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EU QUERO MORRER MENINO

EU QUERO MORRER MENINO
Genaro Faria

Não faz tanto tempo, ou faz uma eternidade - porque o tempo é uma função, não um valor absoluto independente do espaço e da velocidade - que os negros do sul dos Estados Unidos, um país ainda escravocrata de corpo e alma, fundiram o ritmo musical de seus ancestrais africanos para dar o balanço trepidante que embalou a angústia que sentiam com uma expressão tão sincera que logo encantaria o mundo.

Foram os negros que, ao sublimarem sua dor pela arte que herdaram de seus ancestrais, culminaram seus senhores no apogeu da música popular. O jazz passou a dominar de uma forma avassaladora. Tão avassaladora que o nazismo o considerou subversivo. Assim como o seu avesso, o comunismo. Filhos gêmeos do mesmo pai, o marxismo.

Mas chega de política! E de supostas filosofias. Ou doutrinas. Chega de falar do palco desse teatro da nossa vida que um diretor tenha o desplante de dirigir como se fôssemos personagens de uma peça que faz da vida humana uma ficção. Confesso que sou velho demais até para sustentar polêmicas sobre o futebol. Meu time do coração é uma lembrança que nem se esconde sob a cicatriz de minhas paixões juvenis.

O que eu nunca perdi de mim foi minha infância, quero dizer, minha inocência. Que eu sei que perdi há muito tempo. Mas ficou dentro de mim. Não como uma lembrança, mas como a substância de minha consciência. Que a velhice não tem o condão de revogar meus erros, de me redimir, mas não me suprime a capacidade de sonhar.

Voltar a ser menino é como se perdoar de ter sido adulto, o que é tão inevitável quanto à perda da vitalidade de nossas funções biológicas. É impossível escapar da fatalidade de perder nossa inocência quando a vida nos contempla com uma longa biografia.

Mas não é impossível voltar a ser menino.

Foi isso que o escritor de um dos maiores clássicos de nossa literatura – O Encontro Marcado – fez ao reunir seus amigos aficionados por jazz em seu apartamento, cada qual com o seu instrumento, ao ensaiarem diariamente, por hora a fio,como se quisessem compor uma banda de profissionais.

Trata-se, no entanto, de puro divertimento. Eles jamais fariam uma apresentação sequer em festas de família. O que os movia era o prazer de brincar. Feito crianças.

Essa intenção ficou explícita no epitáfio que o líder dessa banda de jazz deliciosamentelúdica escreveu para figurar como um resumo de sua vida: AQUI JAZ FERNANDO SABINO. NASCEU VELHO E MORREU MENINO.

Que também seja este o meu epitáfio. Não sei de qualquer outro que traduzisse melhor o que a vida sequestrou de mim.