Valdemar Munaro
"Todas as noivas são bonitas e todos os mortos são bons", reza um provérbio espanhol. Mortos diminuem a rigidez nos julgamentos que fazemos sobre eles e aumentam nossa compaixão.
Apesar disso, forçoso é dizer algo sobre nosso falecido Papa Francisco. A mídia progressista desejou ardentemente encontrar páginas virtuosas nas linhas de seu pontificado com o objetivo de mostrar suposta e fundacional unanimidade.
Quem se aproximar do Evangelho de Jesus, porém, verá que a unanimidade é artimanha demoníaca, anticristã, astúcia que santifica o que é profano e profana o que é santo. Os aplausos gorduchos que, se recebemos aqui, podem se tornar magricelas lá. Quem, neste mundo, "já recebeu sua recompensa" (Mt 6, 2), não a receberá noutro lugar.
As incômodas e paradoxais verdades ensinadas por Jesus garantem que a bem-aventurança é uma garantia aos que, neste mundo, são odiados e perseguidos, rejeitados, insultados e prescritos por causa do Filho do homem. Os injustiçados por amor do seu Nome, se alegrarão e exultarão pela grande recompensa que lhes está reservada no céu (Lc 6, 22-23).
Segundo o historiador católico argentino, Nicolás Márquez, Jorge Bergoglio foi um Papa de mediana inteligência teológica, mas de sutil esperteza política. Sua atuação ressoou mais na externalidade da Igreja Católica do que no seu campo interior.
Suas palavras e ações imiscuíram-se em multíplices ambiguidades: silêncio sepulcral ante a escalada abortista promovida e aprovada por senadores e deputados peronistas e kirchneristas (muitos deles, amigos católicos) na Argentina; incapacidade para unir e reunir, em sua própria pátria, a Igreja e o povo divididos por políticas socialistas (apoiadas por ele) e desastres econômicos; covardia para visitar sua terra natal (jamais retornou à Argentina), receoso de rejeições e interpretações; concessões ao partido comunista chinês na escolha de futuros prelados da Igreja Católica (na China) em aberta oposição ao cardeal de Hong Kong, Joseph Zen; mediação de Luís Inácio Lula da Silva na libertação do bispo nicaraguense, Rolando Álvarez, ao invés de falar diretamente e de modo recíproco com seu admirado e admirador, Daniel Ortega; abraço e bênção a Nicolás Maduro, ditador venezuelano, narcotraficante e fabricante de pobres e refugiados, sem exortá-lo acerca dos crimes cometidos; telefonemas semanais a seu amigo pároco argentino numa igreja na Faixa de Gaza, sem conversar com líderes do Hamas em favor da libertação de reféns israelenses; cruz de foice e martelo presenteada por Evo Morales na Bolívia e recebida sem cerimônias; exaltação da figura de Hebe de Bonafini, líder das mães da Praça de Maio, radical ofensora e inimiga dos papas João Paulo II e Bento XVI; estreitamento das relações com os irmãos Castro, contumazes e cruéis ditadores comunistas cubanos; louvor à suposta inocência de Dilma Roussef e Luiz Inácio Lula da Silva em desdenho à sociedade brasileira; flertes saudosistas ao peronismo de Juan Domingos de Perón (abusador de menores, ditador e corrupto), ao esquerdismo em geral, à ideologia de gênero e à agenda Woke; silêncio ante a perseguição muçulmana e comunista perpetrada a cristãos na África e na China, etc.
"O próximo papa deve ser um homem de fé, não um político", disse o cardeal alemão, Gerhard Muller, em recente entrevista ao jornal espanhol El País. A manifestação somou-se a de outros cardeais (Robert Sarah, Carlo Maria Viganò, Joseph Zen, Camillo Ruini, etc.), e revela um desconforto silencioso que reina no episcopado católico acerca das manifestações e orientações tomadas pelo falecido pontífice.
Contudo, a maior das ambiguidades, expressou-se na sua generosa dispensa de misericórdias aos que dele se aproximaram. Até mesmo aos que não a suplicavam, ele as distribuía gratuitamente.
Ao comportar-se assim, Francisco foi pontífice de gregos e troianos. Indistintamente, todos usufruíam de sua magnanimidade e ecumenismo: homossexuais, muçulmanos, refugiados, estrangeiros, kirchneristas, clérigos, sindicalistas, peronistas, socialistas, ditadores, corruptos, corruptores, democratas, ladrões, comunistas, pedófilos, crentes, ateus, turistas, políticos de todas as estirpes, pessoas de todas as índoles, cores, idades, funções e condições.
Resta saber se a ampla abertura eclesial, agradável e benevolente, receptora e compassiva, universal e ecumênica a todos os homens e culturas da terra não impossibilitaria à Igreja de ser 'sal e luz do mundo'. A 'casa universal' também pode ser abrigo para demônios, ladrões e salteadores.
Misericórdias baratas, gratuitas e em profusão, terminam inflacionando o perdão e não produzindo frutos. Concedidas a corações que não se arrependem de seus malfeitos, nem de seus pecados, se transformam em 'pérolas jogadas aos porcos': não redimem, não salvam, não renovam, não convertem.
Misericórdias sem arrependimentos são inúteis e enganosas, ofuscam e adocicam falsamente a tênue chama moral que ainda fumega na consciência humana. A contrição é a condição sem a qual, o perdão e a graça não se colam. Como claras em neve que não se mesclam às suas gemas, as misericórdias derramadas sobre corações incontritos, são uma porcaria evangelizadora: levam ao céu o perdoador e ao inferno o perdoado.
Foi, contudo, dádiva divina ter-nos aliviado da responsabilidade final pela fiscalização e julgamento dos mortos. Seria monstruosa tarefa sermos magistrados supremos dos que morrem. Deus, felizmente, encarregou-se do serviço e nos livrou dessa carroça. A 'suprema justiça", entre nós, é porca e infeliz. Quando pusermos o pé no paraíso, surpreender-nos-emos em não encontrar pessoas que tínhamos certeza estariam lá e encontrar pessoas que tínhamos certeza não estariam lá.
A razão da surpresa é que, este lado temporal da existência em que estamos, contamina de vaidade e narcisismo a caridade que praticamos e a modéstia que ostentamos. Quase sempre, julgamos muitos canalhas como santos e muitos santos como canalhas. A miopia e má fé, nos fazem, muitas vezes, enviar ao inferno os que deviam ir ao céu e ao céu os que deviam ir ao inferno.
Felizmente a lupa divina não funciona assim. Luminoso e sábio é o amor de Deus para nos julgar e nos perdoar. Sua sabedoria sabe da honestidade ou torpeza de nossas ações e intenções. Por isso, realiza a perfeita justiça e o perfeito discernimento acerca de nossa inocência ou culpabilidade.
"Nenhum lugar melhor que o cemitério, escreveu o filósofo italiano Michele Sciacca, para entender o sentido da vaidade das coisas. Os poderosos e os pobres se distinguem por uma flor, uma árvore, um metro a mais: todos no cemitério nos 'devemos restringir', diz Kierkegaard; para os mortos há pouco lugar. Portanto, a morte é também critério de avaliação: a sua meditação elimina as desproporções, afrouxa as ampliações retóricas".
Cristo removeu a pedra do buraco em que foi posto. Se isto não tivesse ocorrido, estaríamos ainda no calabouço da morte sem fendas e sem saídas. Ressuscitado dos mortos, porém, levantou-nos com Ele para que não vivamos nas trevas, nem sejamos tragados pela desesperança e pelo niilismo.
* O autor, Vandemar Munaro, é professor de Filosofia