• Cleber Benvegnú
Estamos sempre às voltas com a nossa profissão: fazemos cursos, almejamos novos postos, trabalhamos arduamente. Mas esquecemos de nossa família: não beijamos nossos pais, não afagamos nossos filhos, não conversamos com nossa esposa, somos sisudos ao lidar com eles. Fora de casa somos amáveis, afáveis e sorridentes. Dentro, grosseiros, arrogantes e tristonhos. Dizemos sempre "sim" aos nossos chefes e quase sempre "não" às nossas famílias. Temos tempo para ficar até tarde no trabalho, mesmo sem necessidade. Mas não reservamos sequer um fim de semana para viajar com os filhos e a mulher.
 
Queremos ter carreiras profissionais promissoras e achamos que, com isso, tudo será um mar de rosas. Mas não cuidamos da saúde, nem nutrimos nosso espírito de bons valores ou cultivamos nossos fins existenciais. Estabelecemos relação pragmática de custo-benefício em tudo o que fazemos e com quem quer que convivamos. Mas não percebemos que poucas coisas são tão gratificantes quanto fazer o bem gratuitamente, sem esperar nada em troca.
 
Corremos quilômetros para ficar com o corpo em forma. Mas nos deixamos tomar pelo envelhecimento do ódio e do rancor. Valorizamos grifes, marcas, etiquetas, modismos e roupas. Mas esquecemos de que nada disso consegue esconder a tristeza do semblante. Queremos carros bonitos e suntuosos. Mas não vemos que, para quem está com o espírito perdido, eles continuarão nos transportando do nada a lugar nenhum. Somos orgulhosos e exibidos. Mas esquecemos de que, por vezes, também precisamos dos outros. 
 
Achamos cafona as pessoas que têm fé. Mas, na hora do aperto, invocamos todos os anjos e santos que existem. Consideramos prática moderna a liberação geral dos relacionamentos. Mas invejamos os casais fiéis e que se respeitam de verdade. Queremos que nossos filhos sejam ricos. Mas não os ensinamos a serem pessoas de bem. Queremos que nossos filhos tenham carinho e compreensão para com nossos netos. Mas não os instigamos para o amor. Negamos a Deus. Mas não conseguimos encontrar um sentido para nossas vidas.
 
E então, mergulhados em nossas máscaras, nos deixamos encobrir pelas nossas crises existenciais. Em vez de sermos sujeitos de nossas vidas, somos meramente sujeitados. Empobrecemos o espírito e perdemos a alegria de viver. Mas continuamos teimando em dar atenção aos supérfluos e em esquecer o principal. 
 
Incrível loucura. Até quando?
 
 
Cleber Benvegnú, advogado e jornalista
 
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  • Bruno Gaschagen
Defender o capitalismo é tarefa inglória. Por várias razões. Primeiro, porque as várias interpretações equivocadas e aplicações inadequadas do termo acabaram por dividi-lo numa expressão pluridimensional. Assim, temos o capitalismo de livre mercado, o capitalismo marxista, o capitalismo de Estado, o capitalismo de compadres etc.
Se Marx não foi o criador nem o primeiro a usar o termo, foi quem lhe atribuiu, no célebre O Capital, o sentido negativo mundialmente reconhecido e utilizado, e opôs de forma hábil a distinção entre capitalista e trabalhador. Converteu o empresário, o dono do capital, numa entidade diabólica que age para explorar a mão de obra do oprimido trabalhador.
Diante dessa carga simbólica infame, defender o capitalismo de livre mercado é entrar num debate no qual o anticapitalista entra tentando direcioná-lo contra o seu defensor, que mesmo antes de expor uma defesa conceitual, substantiva e material, com dados empíricos a sustentar a teoria, precisa previamente se defender das acusações pessoais de odiar os pobres e os beagles, e elencar justificativas (que o interlocutor nem sequer considerará) sobre o que o capitalismo não é. O crítico pretende conduzir o debate em sua zona de conforto, e assim ignorar estrategicamente o que diz o defensor do capitalismo de livre mercado.
É um erro muito comum supor que o anticapitalista é um interlocutor intelectualmente honesto. A ingênua boa-fé do defensor do capitalismo é utilizada pelo seu crítico como uma fraqueza a ser explorada; como um macete para atingir a cabeça do inimigo ideológico. E assim o “debate” se converte numa doutrinação e num instrumento de sedução dos incautos em busca de utopias perdidas.
Não é uma coincidência o fato de muitos anticapitalistas serem intelectuais e/ou indivíduos que cons¬troem suas vidas fugindo da realidade. Essa fuga, justamente o vínculo entre ambos, é alicerçada numa teoria utópica (geralmente socialista ou comunista) que a estrutura, legitima e que pavimenta a construção idealizada de uma realidade abstrata na qual o mundo concreto e as pessoas reais não são o que eles veem, mas o que gostariam de ver, como bem apontou o economista americano Thomas Sowell em seu excelente Os Intelectuais e a Sociedade (p. 182-184).
Com a sua peculiar definição de capitalismo, esses ideólogos militantes, muitas vezes disfarçados de professores, atribuem todos os males sociais, políticos e econômicos do mundo a um sistema que, ao contrário da imagem caricatural de estar a serviço das grandes corporações, bancos etc., é, na verdade, formado por todos nós que atuamos na iniciativa privada, do pipoqueiro ao megaempresário. Um sistema que, a despeito da representação ficcional, tem suas virtudes e vicissitudes, e que foi capaz de permitir que as pessoas pudessem se alimentar, empreender, prosperar, ter tempo para o lazer, ter acesso a produtos e a confortos inimagináveis séculos atrás.
Sempre que um anticapitalista exibir o arsenal de equívocos contra o capitalismo, tenha a certeza de que o prejudicado com a alternativa política e econômica que defende não será ele nem os seus companheiros de ideologia e/ou de partido.
Bruno Garschagen é mestre em Ciência Política e Relações Internacionais e podcaster do Instituto Ludwig von Mises Brasil.
 
www.brunogarschagen.com
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  • Bruno Garschagen
Há pelo menos três formas eficientes de converter o Judiciário em um instrumento da ideologia: criar as condições culturais necessárias para que os magistrados já cheguem doutrinados aos cargos; inserir no ordenamento jurídico leis que orientem ideologicamente a atividade jurisdicional; e aparelhar a magistratura com militantes ou simpatizantes da causa investidos no papel de operadores do direito. Será tão mais bem-sucedido nesse objetivo o partido que conseguir desenvolver a dominação judiciária do projeto de poder.
Ao tratar o problema da lei e da justiça na Alemanha sob a República de Weimar e sob o regime nazista, em seu excelente Hitler e os Alemães, o filósofo Eric Voegelin aponta com precisão: “Se os homens são corruptos e incapazes de lei e justiça, ou se eles professam algum tipo de ideologia sob justiça, então, é claro, não se tem nenhuma ordem legal”.
O resultado, contudo, não é a sua extinção, mas a criação de uma ordem legal adequada àquele projeto de poder e a degeneração das concepções de lei e de justiça. O próprio procedimento de criação da legislação é invertido para adequar os modos de vida ao tipo legal. As consequências disso transcendem a dimensão exclusivamente jurídica. Ao legitimar uma ordem legal ideológica, os resultados não serão apenas o de orientar o comportamento dos operadores do direito, mas o de influenciar e moldar o comportamento social, político e econômico da sociedade.
Essa estratégia de transformação e engenharia social não ocorre apenas na esfera jurídica; começa, antes, no ensino formal nas escolas e universidades. O sinal evidente dessa mentalidade foi a substituição do ensino por educação. Não foi uma mera troca de palavras. A finalidade era mesmo transcender os limites de ensinar para o ambicioso e mais efetivo processo de educar – ou melhor, de doutrinar. Esta é uma das condições para que os juízes de hoje tenham sido indivíduos “educados” no passado. É o ponto 1 da conversão do Judiciário em instrumento da ideologia.
Quanto ao segundo ponto, a Constituição é, no âmbito legal, a suprema lei federal que determina o ordenamento jurídico do país nas questões que lhe competem. Se a orientação ideológica na elaboração da Carta Magna for bem realizada, veremos, na verdade, não a proteção de direitos fundamentais, mas a expressão legislativa de um sério estado de degeneração, como apontou Voegelin.
Aparelhar as instâncias superiores do Poder Judiciário, o terceiro ponto da estratégia, se torna mais fácil para o partido no poder quando a Constituição define como competência privativa do presidente da República nomear os ministros do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores. Considerando que as escolhas do partido atenderão a critérios ideológicos, não é de se esperar que os magistrados nomeados contrariem, em maior ou menor grau, aquele projeto de poder.
E se, eventualmente, membros ou colaboradores do partido forem julgados e condenados, essa condenação integra a própria estrutura do processo de manutenção do poder a partir da construção artificial de uma suposta faxina ética, o que inclui a desmoralização dos magistrados independentes ou da própria instituição com a finalidade de fragilizá-la e de criar o clima social adequado a uma maior concentração de poder.
Obviamente, não estou me referindo a qualquer exemplo específico. Como o leitor pode perceber, qualquer semelhança com acontecimentos reais no Brasil de hoje é pura coincidência, apesar das similitudes bastante concretas e evidentes.
Bruno Garschagen, comentarista político e tradutor, é mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Católica Portuguesa e pela Universidade de Oxford. 
www.brunogarschagen.com
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  • Bruno Garschagen
É enorme a quantidade de pessoas que atribuem ao Poder Público um amplo leque de funções e responsabilidades. Se perguntarem a respeito de qualquer tema diretamente relacionado ao dia-a-dia da população, a opinião corrente dirá: é um direito, portanto, cabe ao estado. Esse anseio de parte da sociedade é oriundo da própria ação do agente político, que tem na promessa de garantir todos os direitos possíveis, a despeito de não prover à maioria e prover mal à minoria, sua moeda de troca para se manter na estrutura de poder que o beneficia e o elege e reelege.
A Constituição Brasileira é um sintoma dessa mentalidade. Concebida e aprovada sob a ressaca dos 20 anos de um governo militar, a Carta Magna é extensa, detalhada, confusa e desequilibrada. Originalmente, continha 250 artigos. Há cabimento uma Constituição elencar como direito até o piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do trabalho? Espanta-me é que dentre os mais de 200 artigos não haja unzinho sequer dedicado a nos garantir fama, glória, dinheiro, poder, ou, sei lá, uma vaga no Big Brother Brasil.
Para efeitos comparativos, a Constituição do Chile tem 129 artigos, a da Argentina tem 129 artigos, a da Alemanha tem 146 artigos, a dos Estados Unidos tem sete artigos originais e 27 emendas. O Reino Unido não tem uma Constituição como a conhecemos, mas um conjunto de leis criadas no Parlamento (Statute Law), decisões judiciais (Common Law e Cases Law) e as Convenções Constitucionais.
Além dos números, uma diferença marcante entre a Constituição Brasileira e as dos demais países (não apenas os citados) é a inserção de direitos sociais que não deveriam ser matéria constitucional e são de impossível provisão. Ninguém de boa fé seria contra assegurar às pessoas emprego, renda, saúde, habitação etc. Mas essas garantias impõem ao estado o papel de provedor daquilo que foi prometido e de coator, tanto dos pagadores de impostos que o financiam quanto dos empreendedores obrigados a prestar alguns daqueles serviços a preços abaixo dos de mercado — em alguns casos, até mesmo do custo.
Armada essa estrutura institucional e legal, é perfeitamente natural que uma pessoa reaja quase sempre da mesma forma ao perder o familiar por falta de vaga nos hospitais: a saúde é um direito que lhe foi negado. Ela não está errada. O art. 6º da Constituição define como “direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. É como se eu chegasse na sua casa durante o jantar e fizesse um belo discurso: “Salve, salve, minha gente! É o seguinte: vocês têm direito à moradia, à saúde, à escola, às terra dos outros, desde que improdutivas (se não forem, a gente dá um jeito). De lambuja, para a vovó ali, uma dentadura nova; para o bebezinho, uma linda chupeta sabor tutti-frutti. Mas é o seguinte, todo mês eu venho aqui pegar 36,56% de tudo o que o papai, a mamãe e a vovózinha ganham. Não se preocupem. Confiem em mim.”
Sei que vocês sabem, mas permitam-me a repetição sistemática para lembrar-lhes e motivá-los a difundir a informação: quem paga pelos direitos sociais não é o estado, somos nós (concorde-se ou não).
A nota dissonante na existência de tais direitos na Constituição e na manutenção sem oposição do discurso mantenedor dessa leviandade social é que a garantia legal e as promessas retóricas se mantêm vigorosas a despeito de os serviços públicos serem prestados de forma ruim e precária — quando são prestados. E há gente que defenda a Carta Magna sob o argumento de que esta “promoveu a diminuição do descompasso existente entre o direito e os fatos sociais”, e “informou e conformou todo o corpo normativo pátrio com os princípios genéricos do respeito à dignidade da pessoa humana, da liberdade e da igualdade”. O que a Constituição fez foi tipificar uma utopia. Os resultados são exemplares: desejos ilimitados para realizações limitadas geram insatisfação, impotência e angústia.
Há uma obsessão por direito sociais. Direito social não passa de uma weasel word. O 'social' esvazia o significado da palavra 'direito'. Numa conferência realizada em Brasília em 1981, Hayek aplicou a expressão ao termo justiça social:
“Weasel, doninha, é aquele animal capaz de sugar o conteúdo de um ovo (sem quebrá-lo) sem que se note que a casca está oca. Social é, neste sentido, uma weasel word, e quando ligada a algum termo tradicional, a palavra perde o seu significado. Nós temos uma economia de mercado, mas quando você a classifica de uma economia social de mercado, já não significa mais nada. Você tem a justiça, mas quando você diz justiça social, ela não quer dizer mais nada. Você tem o Estado de Direito — o que os alemães chamam de Reichstadt — mas, quando você junta o termo social ao Reichstadt, novamente isto não quer dizer nada”. [1]
Não se trata aqui de uma defesa contra a existência de direitos na Constituição. Proponho que a Constituição, se necessária na sua forma escrita, trate dos direitos e liberdades individuais, além de definir os poderes e suas respectivas limitações das várias esferas do governo (Executivo, Legislativo e Judiciário). Quanto menos artigos numa Constituição, quanto menos leis em vigor ou em vias de, maior o grau de mobilidade dos indivíduos e da sociedade. Richard Posner dá um conselho valioso: seria bom que os estudantes da Constituição prestassem mais atenção aos aspectos positivos de seu objeto de estudo, em particular as causas e consequências dos direitos, deveres, poderes e estrutura constitucionais. [2]
As leis que promovem obrigações são as mesmas que arruínam nosso senso de responsabilidade, porque há uma crença disseminada, inclusive entre os profissionais do Direito (talvez justamente por causa da profissão), de que as leis garantem os direitos. O que a lei faz, geralmente, é criar novos problemas ao tentar disciplinar determinadas condutas e relações, não propriamente resolver as questões que pretendia solucionar quando foi criada. Nossa legislação penal, por exemplo, impede que uma nova lei retroaja para prejudicar o autor de um crime. De nada adianta defender uma lei mais dura contra um criminoso que praticou uma barbaridade porque ele não será condenado com base na nova lei.
No plano cultural, seria ótimo convencer os políticos do Poder Legislativo (vereadores, deputados estaduais, federais e senadores) de que sua função principal é fiscalizar, não fabricar leis. No plano político, convencê-los de que a revogação total (ab-rogação) ou parcial (derrogação) sistemática das leis é o melhor caminho para o país. Convencer é mais inteligente, menos oneroso, porém mais difícil do que defender a criação de mais leis que os obriguem a agir nesses dois sentidos sem qualquer garantia de que sejam respeitadas.
 Notas
[1] HAYEK, Friedrich. Hayek na UnB, Coleção Itinerários, Brasília: Editora das Universidade de Brasília, 1981, p. 16.
[2] POSNER, Richard A. Overcoming Law, Harvard: Harvard University Press, 1997, p. 171.
 * Publicado originalmente em 12/02/2010 
ordemlivre.org
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  • Ubiratan Iorio
Quando uma criança coloca inadvertidamente o dedo em uma tomada e leva um choque, é certo que no futuro não o fará de novo, isso porque aquela ação e aquele choque ficarão gravados em sua memória e passarão a fazer parte de sua história e porque, evidentemente, aquela criança terá aprendido com a história. O filósofo madrilenho José Ortega y Gasset (1883-1955), em seu famoso livro História como Sistema, mostra que o homem não pode voltar a ser o que já foi um dia e tem permanentemente que buscar uma nova forma de exercer sua condição humana, seja pessoalmente ou socialmente.  O passado, para Gasset, faz parte do presente, pois é uma série de experiências que tornam possível ao ser humano saber o que ele não será por já ter sido. Ou seja, acumulamos experiência de vida, um conjunto de conhecimentos que fica armazenado no reservatório da memória e que pode ser utilizado na realidade de cada “hoje”. Assim, o passado é a própria força viva, atuante e vibrante que sustenta o mundo hoje. Para o filósofo espanhol, então, a essência da vida é a mudança, pois é esta que nos possibilita perceber que “o homem não é um primeiro homem e eterno Adão, senão que é, formalmente, um homem, segundo, terceiro, etc.”
 A história é um sistema formado pela acumulação de experiências humanas e assim o que o homem foi pode ser entendido por meio dela. No livro mencionado, a história é apresentada como forma de entender a vida e o que o homem fez e nele Gasset mostra que a razão humana se desenvolveu ao longo da história na medida em que o homem vivia, geração após geração. O homem, ao contrário do que é comumente cogitado, não possui uma razão abstrata, porque essa razão surgiu e evoluiu na vida. Portanto, a história é o sistema onde se desenvolve a razão vital, na concepção do raciovitalismo de Ortega, que representa um passo além do idealismo kantiano, sem dar espaço para o realismo ingênuo, já que a realidade é vista como coexistência do eu com o mundo. O homem enfrenta o mundo e este o pressiona. E de que maneira? Agindo, para usarmos a Praxeologia de Mises e dos austríacos.  No idealismo de Kant, existe um princípio que, por mais distante que esteja da vida, a direciona, enquanto que, em Gasset, os ideais são subjacentes às escolhas e o homem escolhe conforme seu projeto vital. 
Pensar, então, nada mais é do que dialogar com as  circunstâncias. É famosa a frase de Gasset "eu sou eu e minhas circunstâncias”. Assim, a filosofia de Gasset surge como uma manifestação e diagnóstico da crise - não apenas da ciência ou de seus fundamentos -, atingindo o modelo de razão e levando ao homem da modernidade. Ele critica o racionalismo, o fisicalismo e o naturalismo positivistas e as ideias utópicas de progresso e modernidade. O homem desafia a sua existência como um drama e encontra na  história a “razão original e autóctone". A experiência de vida conduz à razão vital, a da verdade, que é descoberta na história. Portanto, a história é um fator de inteligibilidade, compreensão e explicação da realidade.
 
Mas há seres humanos e, em especial, partidos políticos que se recusam a aprender com a história, seja por estultice, fanatismo, interesses de diversas modalidades, esperteza ou outras causas. Um exemplo claro - dentre tantos - dessa negação da história, ou seja, dessa fuga à inteligibilidade, à compreensão e explicação da realidade, é mundial: a insistência dos governos em combater as crises que seus próprios bancos centrais causaram mediante mais e mais ações dos mesmos bancos centrais. O keynesianismo e omonetarismo, nesse sentido, são a negação da filosofia orteguiana de que se deve aprender com a história.
Mas quero escrever um pouco mais sobre um exemplo que está bem perto de nós, a tal ponto que dele estamos fazendo, infelizmente, parte. Refiro-me à “marcha rumo ao socialismo” encetada pela Unasul, seguindo os ditames do Foro de São Paulo. Mas não vou fazê-lo com descrições cansativas. Vou usar um único exemplo para ilustrar que defender ideias socialistas, em pleno ano de 2014, é uma afronta à condição humana de aprender com a história. Indiscutivelmente, depois de um século de experimentos socialistas, para qualquer ser humano dotado de inteligência mediana é de uma clareza solar que o socialismo já foi descartado pela razão da história.
Dentro desse incrível retrocesso, temos vários casos, como os do Brasil, Argentina, Venezuela, Uruguai, Equador, Bolívia e, ao que parece, no segundo governo da sra. Bachelet que ora se inicia, infelizmente, o do Chile. Mas, como avisei, vou me ater a um caso e este caso é positivo: o do Paraguai.
Este nosso vizinho mandou às favas seu presidente bolivariano e trambiqueiro, fez algumas reformas liberais e se aproximou da Aliança do Pacífico, um bloco latino americano que se recusa a ouvir o canto de sereia socialista. O Paraguai cresceu 14% no último ano, deixando para trás todos os seus vizinhos comunas.
Em texto bastante interessante no excelente Blog do diplomata Paulo Roberto de Almeida, Diplomatizzando, Rogério Mendelski, em julho de 2013, escreve: “ O Paraguai deu uma banana das grandes para o Mercosul e hoje é integrante da Aliança do Pacífico, um novo bloco econômico formado pelo Chile, Peru, Colômbia e México e que já controla quase 50% do comércio exterior da América Latina, movimentando em apenas um ano de existência 556 bilhões de dólares em exportações e 551 bilhões de dólares em importações.
 
O ingresso do Paraguai na AP não foi fácil por que o Brasil tentou prejudicá-lo, não satisfeito com a suspensão daquele país do Mercosul, depois que Fernando Lugo foi cassado pelo Congresso paraguaio. Diplomatas do Paraguai e da Colômbia informaram ao diário ABC Color, de Assunção, que o Brasil quis impedir a entrada dos nossos vizinhos alegando as “cláusulas democráticas” do Mercosul, como se este bloco tivesse alguma influência sobre a AP”.
Prossegue Mendelski mostrando que as tais “cláusulas democráticas” foram motivo de discretas chacotas entre a diplomacia dos países que saudaram o Paraguai pela decisão tomada. “Os membros da Aliança do Pacífico estão muito contentes e agradecidos pela disposição do Paraguai em fazer parte desse foro”, disse o chanceler mexicano José Antonio Meade.
O que vem a ser a AP? O que é esse bloco econômico que com pouco mais de um ano de funcionamento e 210 milhões de habitantes  representa um terço do PIB da América Latina e já se coloca como a oitava economia do planeta?
A resposta é muito simples: Chile, Peru, Colômbia e México – e agora o Paraguai – se uniram em torno de objetivos democráticos e capitalistas na definição do então presidente chileno Sebastián Piñera: “O compromisso da Aliança é o de compartilhar valores comuns como a democracia, o respeito aos direitos humanos, a liberdade econômica privada, o direito à propriedade produtiva, intelectual e empresarial, assim como a economia de mercado e a liberdade de expressão”.
Ainda seguindo Mendelski, esses valores são ausentes, em parte ou totalmente, dos países do Mercosul e, por isso o novo governo do Paraguai não reclamou de sua saída do bloco que ajudara a fundar em 1991. E aduz: “E não quer voltar por que já disse que não senta na mesma mesa onde estiver a Venezuela. Este é o velho Paraguai de guerra cujo povo sabe muito bem o que é ditadura, democracia e farsas como a que Fernando Lugo tentou implantar no país”. Ao que podemos acrescentar: as mesmas que os governos atuais do Uruguai, Bolívia, Equador e Brasil tentam encenar, uns descaradamente, outros disfarçadamente.
Os objetivos da AP, criada formalmente em 6 de junho de 2012 em Antofogasta, no Chile, como vimos,  incluem livre comércio e integração econômica, com uma orientação bem definida em direção à Ásia. Para tal, estão a negociar uma política conjunta de redução agressiva da tarifa de exportação entre suas fronteiras, englobando a totalidade dos produtos, devendo ser eliminada completamente dentro de cinco anos. Em 2013, o bloco ganhou novos integrantes, Paraguai, Panamá e Costa Rica e, atualmente, conta com cerca de dezessete, dos quais sete deles foram aceitos durante a VII Cimeira da Aliança do Pacífico, ocorrida em Cáli, na Colômbia: Paraguai, El Salvador, Equador, França, Honduras, Portugal e República Dominicana
Após ser reeleita no Chile com uma plataforma marcantemente socialista, Michelle Bachelet, que em seu primeiro mandato não ousou mexer no que dera certo, diz que irá “reorientar” a participação do Chile na Aliança, dando maior prioridade aos “demais projetos de integração dos quais o Chile faz parte”. Ou seja, o Chile – logo o Chile, minha gente! – ao eleger uma “nova bolivariana”, vai imitar o caranguejo e andar para trás, mandando às favas os ensinamentos da história. Lamentável. E tão lamentável quanto isto é saber que, quando a economia do país começar a afundar – o que é líquido e certo -, não faltará quem ponha a culpa no “neoliberalismo”.
Os países integrantes da AP, em pouco mais de um ano, já fizeram mais do que o Mercosul em vinte e dois;  eliminaram as tarifas de importação e exportação em 90 por cento de seus produtos para o incremento do livre comércio entre si e, quando negociam em bloco, olham para a Ásia e buscam atrair investimentos que irão beneficiá-los também em bloco.
 
Como Mendelsk escreveu (e bem no estilo que me agrada): “O que para Hugo Chavez e Nestor Kirchner tinha cheiro de enxofre – acordos com os EUA – para a Aliança do Pacífico é puro perfume de progresso e bons negócios”. Pensando assim, a AP partiu para uma série de acordos bilaterais com os Estados Unidos. Enquanto isso, os governos dos países do Mercosul, veem ainda os yankees s como exploradores dos pobres latino-americanos...
A presidente do Brasil esteve na semana passada em Davos, onde disse que o Brasil espera atrair investimentos externos, passou o final de semana em Lisboa, hospedando-se, com uma comitiva que ocupou mais de trinta suítes do hotel mais caro da capital portuguesa (sendo que o preço da que ocupou foi de cerca de 8.000 Euros), e no dia seguinte foi para onde, minha gente? Ora, para Cuba, beijar a mão do seu ídolo barbudo, um comunista caquético (pela idade e pela cabeça) que vestia uma jaqueta Adidas capitalista... Que investidor externo, com o mínimo de compreensão das coisas – e da história -, se disporá a investir em nosso país? Ou na Argentina, Uruguai, Bolívia, Equador e Venezuela? Onde será – caramba, caracoles! – que as pessoas desses governos estão com suas cabeças, remuneradas para tomar decisões pelos pagadores de tributos?
Pois é, enquanto o Mercosul não desempaca desde 1991, enquanto Cristina e Dilma ficam brincando de “batalha naval” aduaneira, a AP atrai investimentos e negocia com todos os países oferecendo vantagens alfandegárias e taxas atraentes.
Em 2012 o Chile cresceu 5,5 % e recebeu 30 bilhões de dólares em investimentos externos (duvido que com a “nova Bachelet” isso se repita em 2014 e no futuro). O México firmou 13 acordos comerciais na mesma linha, o Peru 12 e a Colômbia 11.
Mendelsk encerra o seu texto com amargura irônica: “No Brasil, caminhões com gêneros perecíveis ficam dias parados em Uruguaiana esperando pela boa vontade da burocracia argentina. E vice-versa”.
Clicando aqui você poderá visualizar as taxas de crescimento do PIB de todos os países da América em 2013. E notará que, apenas para falarmos em termos de América do Sul e Central, a taxa de crescimento de nosso PIB ficou bem abaixo das dos demais países. Se você tomar os países do Mercosul e os comparar com os da Aliança para o Pacífico, notará que a taxa média de crescimento dos últimos excedeu bastante a dos primeiros.
É uma lástima essa marcha para o socialismo que o nosso governo e os de outros países da América Latina vêm fazendo. Para essa gente, a história serve para desaprender. Nem crianças com dois anos de idade – aquelas que aprenderam que tomadas dão choque – fariam o que nossas festejadas “esquerdas” estão fazendo. Porque crianças são percucientes e inteligentes.
 
www.ubiratan.iorio.org
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  • Leonardo Faccioni
Por natureza, toda esquerda é libertária: adora libertar as balas dos tambores de seus revólveres. Que seus dissidentes insistam em cruzar a trajetória dos disparos é uma infeliz coincidência – nada que macule os esforços da utopia.
 
Os regimes de esquerda instalam-se para abolir todas as prisões. Quem poderia resistir a tão nobre ideal, senão uma raça de víboras? Evidentemente, toda resistência à esquerda há que ser encarcerada.
 
Um governo de esquerda é necessário para que todos sejamos iguais. Nada mais justo que quem o torne efetivo venha elevado acima, mas muito acima dos demais. O governante de esquerda é ídolo, é soberano, é deus – e quem não lo crê está morto. Ou estará, após julgamento sumário por tribunal popular de exceção, cujo costume fará regra.
 
A esquerda é um paradoxo para a doxa. É um fim em si mesma. É um moto contínuo em um poço sem fundo. É Cronos entre os gregos, a devorar os próprios filhos. É a grande aranha de Tolkien, cuja fome um mundo inteiro não poderia saciar. "Fuzilamos? Sim, fuzilamos e continuaremos fuzilando sempre que necessário. Nossa luta é dedicada à morte", bradou um certo comandante argentino. "Caminante, no hay camino - se hace camino al andar". E ai daquele que pensar em desviar do abismo logo adiante – bala na nuca, conta à viúva. A esquerda é um morrer constante. O cristão, pelo martírio, alcança a Vida Eterna. O militante tombado assegura, ao revés, que a destruição não tenha fim.
 
Stálin ordenava sacar das fotos de glórias passadas os traidores de sua revolução. "Voltar atrás? Nem para pegar impulso!", é hoje ainda lema da ilha dos irmãos Castro. Um conservador, diria G.K. Chesterton, consulta sempre a democracia dos mortos, recusando-se a seguir cegamente a arbitrária aristocracia dos que, neste instante, encontram-se vivos. Reconhece no tempo um baú de tesouro inestimável: a sabedoria confiada pelos avós de nossos avós, a ser legada aos netos dos netos. O esquerdista é de outra cepa: dedica-se continuamente a jogar ao mar novos cadáveres e os repescar do oceano, pelo macabro prazer de arremessá-los novamente.
 
O pior crime em uma organização de esquerda, aquém tão-somente do amor ao próximo acima das abstrações não definidas, é parar. Sim, parar pura e simplesmente. Deixar de pisotear, feito Átila, a grama sob seus pés, para enfim ouvir o silêncio. A harmonia da noite em uma praia deserta, indiferente ao pensamento. Sem uma turba a repetir os jargões de sua garganta, o esquerdista é um nada. Para o conservador, o silêncio é tudo: por ele escuta as regras impressas na natureza das coisas, que serenas se revelam apenas a quem as respeita tais como foram criadas. Não é um fatalista, aprende sim a cultivá-las conforme suas aptidões. Descobre segredos inóspitos na grande aventura do real.
 
 
Um deles: não baleá-las, se as quer vivas. Elementar? Nem tanto. Desde 1789*, ao menos, e hoje ainda, a esquerda política, cultural, universal – turbilhão puro, eco de si mesma em constante reinvenção da roda – matou, mata, promete matar, seguirá matando para que tudo possa, garante ela, viver um dia.
 
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*Datar o sanguinário modus operandi da política sinistra a partir da revolução francesa, seja dito, é generosa concessão. Particularmente, vislumbro suas raízes entre um punhado de heresias tardomedievais e os postulados maquiavélicos (Niccolò Machiavelli, recordemos, viveu de 1469 a 1527) que, esvaziando a Cristandade, convenceriam detentores e persecutores do poder de que a “luta” dispensava os princípios da ética comum, ou que a moral – ah, a moral! – aplicável aos simples, aquela mesma moral não se lhes aplicaria. Uma linhagem que haveríamos de perquirir seguramente até o super-homem niilista. Posturas intelectuais que forjam caracteres patológicos, assinalaria Dostoiévski; indivíduos cuja loucura fundaria civilizações inteiramente calcadas na histeria, arremata Dr. Andrew Lobaczewsk.
 
Entrementes, não nos pautemos por minha opinião. Deixemos falar ele, o revolucionário, na pessoa do epocal Saul Alinsky. Assim começa seu livro mais notável, fundamental à nova esquerda americana e global: com uma dedicatória “ao primeiro radical...que rebelou-se contra a ordem estabelecida, e o fez tão eficazmente que, ao menos, conquistou seu próprio reino: Lúcifer” ("Rules for Radicals"). Como se vê, 1789 foi singelo novo ato a um terror que precede o homem. Terror tão ancestral quanto a noite, e como a noite a ser vencido pelo dia... Noites e dias; revolução e contrarrevolução.
 
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