• Miguel Lucena
  • 24 Janeiro 2018


Flagrados com a mão na cumbuca, os dirigentes do partido da moral e da ética ficaram sem argumentos fáticos para se defender perante o povo e a militância em geral. E agora, José? Façamos de conta que tudo é um sonho.

Conta-se o sonho de que os inimigos, não suportando o sucesso do maior partido de esquerda das Américas, montaram uma trama diabólica para criminalizar suas ações:

 

  • A corrupção e o roubo sempre existiram. Não há razão para investigar e punir os companheiros. Se um juiz qualquer insiste nisso, certamente estará a serviço das forças imperialistas e dos inimigos do povo.

Para blindar os dirigentes como heróis e dar à militância um ar de guerrilheiros, para que suportem a vergonha de defender a corrupção e o assalto aos cofres públicos, quando até dia desses se vangloriavam de ser honestos e acusavam os adversários de ladrões, volta-se no tempo pré-1964, vislumbram golpes de estado, estados de sítio, baionetas escaladas, fuzis e metralhadoras:

 

  • - Lutamos contra a opressão dos poderosos. Estamos sendo esmagados pela força do capital. Travamos a luta de guerrilhas. Cada militante é um combatente de uma causa nobre. Tudo não passa de mentiras deslavadas. A verdade é relativa, está na cabeça de cada ser humano. O bem e o mal não existem. Lembremos de Leonal Brizola, resistindo no Rio Grande do Sul. Criemos novamente a Cadeia da Legalidade. Cada militante com Facebook, Instagram e Whatsapp é uma emissora de rádio. Cadê o golpe militar que não vem? Não está tão rápido quanto em 1964. Por que será?

Veremos como termina o sonho, após o julgamento no Tribunal Federal do Rio Grande do Sul. O Judiciário é fascista? Como fechá-lo? Chamem Lênin, Stálin, Polpot, Fidel, Che Guevara ou Hugo Chavez! Não, mais fácil seria com Kim Jong-un e Nicolás Maduro, que estão vivos.

Cadê o golpe que não vem para justificar o heroísmo do militante? Esse estado de direito é mesmo um horror! Como ousa julgar Lula?


• Miguel Lucena é Delegado de Polícia Civil do DF, jornalista e escritor.
• Publicado originalmente no Diário do Poder

 

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  • Ives Gandra da Silva Martins
  • 23 Janeiro 2018

Lamento que um julgamento apenas técnico sobre direito e provas seja objeto de pressões, ameaças e manifestações destituídas de fundamentação jurídica

  O julgamento do recurso interposto pelo advogado de Lula contra a decisão do juiz Sergio Moro que condenou o ex-primeiro mandatário da nação está suscitando variada gama de objeções e de indagações sobre a independência dos poderes, os fundamentos da democracia e se há algo que justifique pressões políticas sobre os julgadores do TRF da 4.ª Região.

Minha primeira consideração é de que, pelo regime democrático, a independência dos poderes deve ser respeitada; qualquer pressão de movimentos que costumeiramente violam a lei com invasões de terra e depredações de prédios públicos e privados é antidemocrática e segue caminhos próprios de quem deseja impor sua vontade pela violência, e não pela vitória nas urnas ou aprovação em concurso público.
?
Lamento que um julgamento apenas técnico sobre direito e provas seja objeto de pressões, ameaças e manifestações destituídas de fundamentação jurídica, atribuindo-se a uma sentença de mais de 200 páginas, minuciosamente proferida com cautela e argumentos, características de perseguição política, não própria do Poder Judiciário em um regime democrático.

O segundo aspecto é que a decisão a ser proferida porá fim às incertezas. Se for absolvido, o ex-presidente poderá concorrer nas eleições de 2018, sem qualquer obstáculo, devendo enfrentar os demais candidatos com seu natural carisma – inclusive para justificar, perante a sociedade, por que nos períodos de seu governo e nos da ex-presidente Dilma houve desvios monumentais de dinheiro público, com prejuízos enormes à Petrobras, concessão de empréstimos não pagos a países como Venezuela, Angola e Moçambique, inflação de dois dígitos, queda fantástica do PIB, desajustes das contas públicas, juros estratosféricos, recessão e desfiguração da imagem brasileira no exterior, o que resultou no rebaixamento brasileiro a três níveis abaixo do grau de investimento. O discurso populista de pobres contra ricos talvez seja a tônica que adotará em sua campanha. Por outro lado, se for condenado, ficará inelegível pela Lei da Ficha Limpa.

Além disso, pela jurisprudência do STF, após decisão condenatória de segunda instância pode ser decretada a prisão do ex-presidente. Pessoalmente, pelo artigo 5.º, inciso LVII, da Lei Suprema, entendo que apenas após o trânsito em julgado de decisão condenatória poderia ser um acusado considerado culpado. De que vale, porém, a opinião de um velho e modesto professor de 82 anos perante a jurisprudência firmada e aplicada pela suprema corte a inúmeros políticos brasileiros, com amplo apoio da imprensa e do povo, no sentido de que é a decisão de segunda instância que caracteriza a culpa do acusado, e não o trânsito em julgado? Não tenho preconceitos aristocráticos contra a suprema corte.

Não é a violação da lei, com invasões de terra e prédios públicos e privados, que torna os que assim agem democratas e supremos julgadores do Poder Judiciário. Quem deseja modificação daquilo que entende não estar certo no sistema deve fazer o teste das urnas ou, então, submeter-se aos concursos públicos necessários para galgar cargos técnicos que lhe permitam essa atuação, única forma de respeitar o que há de mais valioso no país na atualidade, que é o Estado Democrático de Direito.

* Ives Gandra da Silva Martins é professor emérito das universidades Mackenzie, Unip, Unifeo e UNIFMU, das escolas de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), Superior de Guerra (ESG) e da Magistratura do Tribunal Regional Federal – 1.ª Região, presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomércio-SP, e fundador e presidente honorário do Instituto Internacional de Ciências Sociais (Iics).

* * Publicado originalmente pela Gazeta do Povo
 

 

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  • Gilberto Simões Pires, em Ponto Crítico
  • 22 Janeiro 2018

 

MAIOR IMPORTÂNCIA
Nesta semana, por mais que se apresentem fatos considerados como extremamente relevantes, nada conseguirá ganhar importância maior do que o julgamento no TRF4, em Porto Alegre, em segunda instância, do caso do tríplex do Guarujá que o maior mentiroso do planeta recebeu, em forma de propina, pela empreiteira OAS.


3 X 0
Em todas as rodas o que mais acontece são apostas e/ou prognósticos sobre o resultado do julgamento. Como não se trata de uma aposta que exige o pagamento de algum prêmio, a maioria dos jogadores manifesta apenas o seu desejo. Aí, os que querem Lula CONDENADO não querem saber de outro escore que não seja 3 x 0.

 

DOIS EFEITOS
Entretanto, no meu modo de ver, estas duas apostas representam um claro DIVISOR DE ÁGUAS. Ainda que o Brasil não vá acabar, independente do resultado, uma coisa é certa: enquanto o 3 x 0 é capaz de produzir um estrondoso EFEITO POSITIVO para elevar sobremaneira a confiança no país, o escore de 2 x 1 deixará a maioria dos brasileiros FRUSTRADOS.

 

VITORIOSO

Imagino, neste momento, que os petistas e assemelhados mais querem é que o julgamento termine com uma derrota de 2 x 1. Hábil como ninguém, Lula não apenas ganhará uma sobrevida como, principalmente, usará este escore para proclamar que saiu VITORIOSO. Aliás, da mesma forma como repetem uma ou mais mentiras até que se transformem em verdades, Lula vai usar o escore para dizer que foi INOCENTADO.

 

MANIFESTAÇÃO DE RUA
Confesso que não acredito que manifestações de rua não serão capazes de fazer o resultado do julgamento, qualquer que seja. Entretanto, quanto mais gente for às ruas, mais ficará provado o que o povo quer de seus representantes. Pelo que sei e vi, até agora, só o PT e assemelhados estão se movimentando. A conferir.

 

 

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  • Renato Sant’Ana
  • 22 Janeiro 2018

 

A questão é: por que estão, os caciques, empurrando os índios para o ataque - a matar ou morrer?

Como quem dá uma senha para a ação, a presidente nacional do PT, Gleisi Hoffmann, diz que "Para prender o Lula, vai ter que prender muita gente, mas, mais do que isso, vai ter que matar gente." Zé Dirceu, parecendo um radical islâmico, pede "um dia de fúria" no julgamento de Lula.

Inumeráveis ativistas de esquerda, como o petista Paulo Pimenta, o comunista Urias Rocha, os coronéis do MST e muitos mais, inundam as redes sociais, falando de "estourar cabeças", "degolar juízes", "matar Sergio Moro", etc. É apologia da violência. Incitação ao crime.

Mas é uma diretriz partidária. O site do PT vem fazendo uma agressiva campanha de calúnias, injúrias e difamações contra os desembargadores do TRF-4 que vão julgar Lula - é a conhecida tática de "assassinar reputações". Só que nenhum chefe pretende manchar as mãos: o trabalho sujo fica para a militância periférica.

Regida pelo ódio, a esquerda revolucionária tem um lema: "quanto pior, melhor!". De índole coprofílica, aposta no caos social. Com métodos fascistas, provoca a polícia e demais autoridades instituídas.

Aonde quer chegar? Seu maior prêmio será UM CADÁVER! Que só poderá ser, claro, o de um esbirro militante. Que, morto, será transformado em mártir, em herói de uma causa, símbolo a ser usado na propaganda ideológica.

Certo é que, para compor o cenário, os caciques procuram um corpo. Eis por que estão eles insuflando a raia miúda, desejando um incidente que provoque uma reação enérgica da força pública. Com sorte, terão o cadáver de um militante. É a ética revolucionária.

• Renato Sant'Ana é Psicólogo e Bacharel em Direito.
• Publicado originalmente no Alerta Total – www.alertatotal.net

 

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  • Estadão, editorial
  • 21 Janeiro 2018

Convidados a opinar sobre a afirmação “O Congresso representa o povo brasileiro”, 84% dos entrevistados pela consultoria Ideia Big Data para uma pesquisa encomendada pelo Brazil Institute/Wilson Center, divulgada recentemente, disseram discordar totalmente do enunciado proposto.

O resultado obtido com esta nova pesquisa já apareceu em outras consultas de mesma natureza, com pequenas variações de porcentuais. Desde as manifestações havidas em junho de 2013, fala-se muito na chamada crise de representatividade. De lá para cá, a confiança da sociedade em seus representantes no Poder Legislativo só fez cair, muito pela ação nefasta dos maus políticos, mas também, em boa medida, por uma perniciosa campanha contra os políticos em geral engendrada por alguns membros do Poder Judiciário e do Ministério Público.

Que vivemos uma crise de representatividade não há dúvida. No entanto, só conseguiremos transpô-la e chegar a um patamar de desenvolvimento institucional no País se a abordagem do problema, em todos os níveis, for mais realista e menos falaciosa.

Sim, o Congresso Nacional representa o povo brasileiro. E o representa não só do ponto de vista formal, à luz da Constituição, mas sobretudo na essência. Somos aquilo que lá está, com todas as virtudes, todos os vícios e idiossincrasias. Não se tem notícia de que algum dos 594 congressistas – 513 deputados e 81 senadores – tenha forçado sua entrada em uma das Casas Legislativas. Todos lá estão a exercer o múnus público em razão do voto popular.

Portanto, falar de uma crise de representatividade em que a responsabilidade por sua ocorrência recai apenas sobre o lado dos representantes é uma ótima estratégia para aplacar consciências, mas pouco eficaz para, de fato, resolver um grave problema de nossa democracia.

Evidentemente, o sistema político-eleitoral hoje dá azo a absurdos como os chamados puxadores de voto, candidatos que obtêm uma expressiva votação, bem acima do coeficiente eleitoral, e, por esta razão, elegem a reboque candidatos menos votados ou mesmo desconhecidos. Caso a Câmara dos Deputados aprove o voto distrital misto – como já o fez o Senado – para as eleições proporcionais a partir de 2020, as distorções do sistema eleitoral serão muito atenuadas.

Mas a disfunção das atuais regras eleitorais não serve como álibi sequer para atenuar a parcela de responsabilidade do eleitor sobre a má qualidade da representação congressual. Afinal, as regras valem para todos, são conhecidas e, se o eleitor quiser, poderá usá-las a seu favor. O problema é que não quer. Veja-se que na mesma pesquisa que revelou que a esmagadora maioria da população não se sente representada pelo Congresso que elegeu, a Ideia Big Data apurou que 79% dos eleitores não são capazes de dizer o nome dos deputados e senadores nos quais votaram na última eleição.

Outro dado revelador sobre a responsabilidade do eleitor sobre o que escolhe na urna é a taxa de renovação política do Congresso. Não obstante este índice variar entre 40% e 50% a cada pleito, não se pode dizer que, de fato, esta mudança seja perceptível, seja pelos nomes dos próprios eleitos – não raro ex-congressistas, ex-prefeitos, ex-governadores e seus descendentes –, seja pela falta de arejamento de ideias.

Viceja no seio da sociedade um forte sentimento de supervalorização dos direitos coletivos em detrimento dos direitos e deveres individuais. O resultado é este enorme peso que os cidadãos atribuem ao Estado e a seus agentes como os principais provedores de suas necessidades, desde as mais comezinhas do dia a dia a seus próprios destinos como indivíduos.

Em que pesem os grandes males à Nação causados pelos maus políticos, que não honram o mandato popular que lhes foi conferido, não se pode tratar da crise de representatividade sem enfrentar com coragem, sem demagogia, as razões que levam o eleitor a não se importar com a atividade política como deveria, esperando que a solução de seus problemas esteja exclusivamente nas mãos de alguém que não ele próprio, o eleitor.

 

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  • Olavo de Carvalho
  • 21 Janeiro 2018

Hipnotizada pela lógica do desejo, que não enxerga cura para os males senão na busca de mais satisfações e mais liberdade, como poderia ela descobrir que seu problema não é falta de bens ou prazeres, mas falta de deveres e sacrifícios que restaurem o sentido da vida e a integridade da alma? (Olavo de Carvalho)


Adam Smith observa que em toda sociedade coexistem dois sistemas morais: um, rigidamente conservador, para os pobres; outro, flexível e permissivo, para os ricos e elegantes. A história confirma abundantemente essa generalização, mas ainda podemos extrair dela muita substância que não existia no tempo de Adam Smith. O que aconteceu foi que o advento da moderna democracia modificou bastante a convivência entre os dois códigos. Primeiro elevou até à classe dominante o moralismo dos pobres: na América do século XIX vemos surgir pela primeira vez na História uma casta de governantes que admitem ser julgados pelas mesmas regras vigentes entre o resto da população. No século seguinte, as proporções se invertem: a permissividade não só se instala de novo entre a classe chique, mas daí desce e contamina o povão. É verdade que não o faz por completo: metade da nação americana ainda se compreende e se julga segundo os preceitos da Bíblia. Mas os efeitos da "revolução sexual" foram profundos, espalhando por toda parte o permissivismo e o deboche para muito além da esfera sexual. O episódio Clinton, perdoado pelo Parlamento após ter usado o Salão Oval da Casa Branca como quarto de motel, mostra que, para uma grande parcela da opinião pública, até as aparências de moralidade se tornaram dispensáveis. Um breve exame das estatísticas de gravidez infanto-juvenil e do uso de drogas mostra que idêntica transformação ocorreu nos países da Europa ocidental, onde a dissolução dos costumes já vinha desde o fim da I Guerra Mundial (v. Modris Eksteins, Rites of Spring ).

As conseqüências dessa transformação se ampliam para muito além do domínio "moral". Conforme vem demonstrando E. Michael Jones numa série memorável de estudos (Degenerate Moderns: Modernity as Rationalized Sexual Misbehavior , San Francisco, Ignatius Press, 1993, e volumes subseqüentes) , é aí mesmo que se deve procurar a causa do sucesso das ideologias totalitárias no século XX. Articulando o seu diagnóstico com o de Gertrude Himmelfarb em One Nation, Two Cultures: A Searching Examination of American Society in the Aftermath of Our Cultural Revolution (New York, Vintage Books, 1999), podemos chegar a algumas conclusões bem elucidativas.

O poeta Stephen Spender, após romper com o Partido Comunista, já havia admitido que o que conduzia os intelectuais ocidentais à paixão por ideologias contrárias à própria liberdade de que desfrutavam era o sentimento de culpa e o desejo de livrar-se dele a baixo preço. A origem dessa culpa reside no fato de que amplas faixas da classe média passaram a desfrutar de lazeres e prazeres praticamente ilimitados, sem ter de arcar com as responsabilidades políticas, militares e religiosas com que a antiga aristocracia pagava o preço moral dos seus desmandos sexuais e etílicos. Num tempo em que a França era o país mais cristão da Europa, Luís XIV tinha nada menos de 28 amantes, mas sua rotina de trabalho era mais pesada que a de qualquer executivo de multinacional, sem contar o fato, tão brilhantemente enfatizado por René Girard (Le Bouc Émissaire , Paris, Grasset, 1982), de que a função real trazia consigo a obrigação de servir de bode expiatório para os males nacionais: quando a cabeça de Luís XVI rolou em pagamento das dívidas de seu pai e de seu avô, isso não foi uma inovação revolucionária, mas o simples cumprimento de um acordo tácito vigente no cerne mesmo do sistema monárquico. Já na Idade Média, os encargos da defesa territorial incumbiam inteiramente à classe aristocrática: ninguém podia obrigar um camponês ou comerciante a ir para a guerra, mas o nobre que fugisse aos seus deveres bélicos seria instantaneamente executado pelos seus pares. Noblesse oblige : a classe aristocrática era liberada de parte dos rigores morais cristãos na mesma medida em que pagava pela sua liberdade com a permanente oferta da própria vida em sacrifício pelo bem de todos. A democratização da permissividade espalha os direitos da aristocracia por uma multidão de recém-chegados que de repente se vêem liberados da pressão religiosa sem ter de assumir por isso nenhum encargo extra, por mínimo que seja, capaz de restaurar o equilíbrio entre direitos e deveres. Ao contrário, junto com a liberdade vem o acesso a bens inumeráveis e a um padrão de vida que chega mesmo a ser superior ao da velha aristocracia – tudo isso a leite de pato. Ortega y Gasset notou, no seu clássico de 1928, La Rebelión de las Masas , que o típico representante da moderna classe média, o "homem massa", era realmente um filhinho-de-papai, um señorito satisfecho que se julgava herdeiro legítimo de todos os benefícios da civilização moderna para os quais não havia contribuído em absolutamente nada, pelos quais não tinha de pagar coisa nenhuma e dos quais, geralmente, ignorava tudo quanto aos sacrifícios que os produziram.

Por toda parte, nas civilizações anteriores, um certo equilíbrio entre custo e benefício, entre direitos e deveres, entre prazeres e sacrifícios, era reconhecido como o princípio central da sanidade humana. A liberação de massas imensas de população para o desfrute de prazeres e requintes gratuitos é uma das situações psicológicas mais ameaçadoras já vividas pela humanidade desde o tempo das cavernas. Para cada indivíduo engolfado nesse processo, o efeito mais direto e incontornável da experiência é um sentimento de culpa tanto mais profundo e avassalador quanto menos conscientizado. Mas como poderia ele ser conscientizado, se na mesma medida em que se abrem as portas do prazer se fecham as da consciência religiosa? O señorito satisfecho é corroído por um profundo ódio a si mesmo, mas está proibido, pela cultura vigente, de perceber a verdadeira natureza de suas culpas, e mais ainda de aliviá-las mediante a confissão religiosa e o cumprimento de deveres penitenciais. A culpa mal conscientizada, conforme a psicanálise demonstrou vezes sem conta, acaba sempre se exteriorizando como fantasia persecutória e acusatória projetada sobre os outros, sobre "o mundo" sobre "o sistema". O homem medianamente instruído do nosso tempo joga suas culpas sobre "o sistema", fingindo para si mesmo que está revoltado pelo que ele nega aos pobres, quando na realidade o odeia por aquilo que esse sistema lhe dá sem exigir nada em troca. Não que o sistema seja isento de culpas; mas a mesma prosperidade geral que espalha os benefícios da civilização entre massas crescentes que jamais poderiam sonhar com isso nos séculos anteriores mostra que essas culpas não são de ordem econômica, mas cultural: o capitalismo não cria miséria e sim riqueza; mas junto com ela espalha o laicismo e o permissivismo, rompendo o equilíbrio entre o prazer e o sacrifício, necessidade básica da psique humana. Daí o aparente paradoxo de que o ódio ao sistema se dissemine principalmente – ou exclusivamente – entre as classes que dele mais se beneficiam materialmente (lembre-se do que eu disse sobre o movimento gay no artigo da semana passada). A tentação socialista aparece aí como o canal mais fácil por onde as culpas do filhinho-de-papai são jogadas precisamente sobre as fontes do seu bem-estar e da sua liberdade.

Vejam essa meninada da USP, gente de classe média e alta, depredando uma universidade gratuita, e compreenderão do que estou falando: o que esses garotos precisam não é de mais benefícios; é de uma cobrança moral que restaure a sua sanidade. Mas, como os representantes do Estado são eles próprios señoritos satisfechos que também não compreendem a origem das suas próprias culpas, sua tendência é fazer dos jovens enragés um símbolo da sua própria consciência moral faltante; daí que lhes cedam tudo, num arremedo de penitência, corrompendo-os e corrompendo-se cada vez mais e precipitando uma acumulação de culpas que só pode culminar na suprema culpa da sangueira revolucionária. "Vivemos num mundo demente, e sabemos perfeitamente disso", dizia Jan Huizinga na década de 30, pouco antes que o desequilíbrio da alma européia desaguasse no morticínio geral. Transcorridas quase oito décadas, a humanidade ocidental nada aprendeu com a experiência e está pronta a repeti-la. Hipnotizada pela lógica do desejo, que não enxerga cura para os males senão na busca de mais satisfações e mais liberdade, como poderia ela descobrir que seu problema não é falta de bens ou prazeres, mas falta de deveres e sacrifícios que restaurem o sentido da vida e a integridade da alma?

Não é preciso dizer que a adesão ao Ersatz revolucionário e socialista, sendo na base uma farsa neurótica, não alivia as culpas de maneira alguma, mas as recalca ainda mais fundo no inconsciente, onde se tornam tanto mais explosivas e letais quanto mais encobertas por um discurso de autobeatificação ideológica (Marilena Chauí sonhava em "viver sem culpas"; o sr. Luís Inácio Lula da Silva admite modestamente ter realizado esse ideal). O ódio ao sistema – com sua expressão mais típica hoje em dia, o anti-americanismo — cresce na medida mesma em que a ilusão autolisonjeira da pureza de intenções induz cada um a sujar-se cada vez mais na cumplicidade com a corrupção e os crimes do partido revolucionário. Os capitalistas, os representantes do "sistema", por sua vez, aceitam passivamente ser objeto de ódio e até se regozijam nele, na vã esperança de assim purgar suas próprias culpas; mas, como estas não residem onde as aponta o discurso revolucionário, cada nova concessão ao clamor esquerdista os torna ainda mais culpados e vulneráveis.

Antecipando as análises de Jones e de Himmelfarb, Igor Caruso ( Psychanalyse pour la Personne , Paris, Le Seuil, 1962) localizava a origem das neuroses não na repressão do desejo sexual, mas na rejeição dos apelos da consciência moral. O abandono da consciência de culpa não pode trazer outro resultado senão a proliferação de culpas inconscientes. E as culpas inconscientes necessitam de novos e novos bodes expiatórios, cujo sacrifício só as torna ainda mais angustiantes e intoleráveis.

Diário do Comércio, 11 de junho de 2007
 

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