• Armando Valladares
  • 14 Maio 2015

 

Em um dos mais significativos lances simbólicos da "ostpolitik" vaticana em favor do comunismo cubano, o pontífice Francisco recebeu o tirano Raúl Castro e, em meio a sorrisos e amabilidades mútuas, estreitou largamente suas mãos ensaguentadas, chjegando a pedir ao líder comunista que rezasse por ele. É uma cena arrepiante e estarrecedora, diante de Deus e da História, marcará de maneira indelével o atual pontificado.

"Como já lhes disse aos dirigentes cubanos, eu leio todos os discursos do Papa e sobretudo os comentários que ele faz. E se o Papa segue falando assim, começarei a rezar e retornarei à Igreja. E não o digo em brincadeira (Página 12, Buenos Aires, 11/05/2015). Foram estas as frases pronunciadas pelo ditador que mais chamaram a atenção. Para não deixar dúvidas sobre a continuidade de seu efetivo pensamento, o tirano reafirmou sua condição de "comunista, do Partido Comunista de Cuba" (Rádio Havana, Cuba, 10/05/2015). Cinicamente, recordou que os católicos cubanos podem pertencer ao Partido Comunista de Cuba, como se na realidade não fossem posições doutrinárias contraditórias e excludentes. E deixou escapar que havia conversado há pouco tempo com o tristemente celebre Frei Betto, um dos líderes da Teologia da Libertação, amigo pessoal de fidel Castro e autor do livro "Fidel e a Religião"" (Vatican Insider, Roma, 10/05/2015).

A alusão a Frei Betto, feita talvez inadvertidamente por Raúl Castro, é importante para conhecer o pano de fundo das declarações, em Roma, do atual tirano. Frei Betto explicou a Fidel Castro, segundo narra o mencionado livro-entrevista, que a melhor tática com os católicos não era persegui-los e fazê-los mártires, mas integrá-los à revolução comunista em torno a metas supostamente comuns a católicos e a comunistas. Fidel já o intuía. Em discurso na Universidade de Havana, já havia traçado essa maquiavélica retificação: "Não cairemos no erro histórico de semear o caminho com mártires cristãos, pois bem sabemos que foi precisamente o martírio que deu força à Igreja. Nós faremos apóstatas, milhares de apóstatas" ( cf. Juan Clark, "Cuba: mito e realidade", Edições Saeta, Miami-Caracas, 1ª. ed. 1990, páginas 358 e 658). Para por em prática essa retificação estratégica, com a finalidade de fazer apóstatas, se chegou a reformar a própria Constituição comunista para permitir o acesso dos católicos ao Partido Comunista, através do enganoso artigo 54, que assegura o "direito" de "professar" e "praticar" "qualquer crença religiosa" contanto que se faça "dentro do respeito à lei" ... comunista. Dessa maneira, a Constituição abria as portas do partido aos católicos revolucionários, que em Cuba chegaram a elaborar uma "teologia da colaboração". O sacerdote René David, professor de Teologia no Seminário de Havana, no documento " Por uma teologia e uma pastoral da reconciliação em Cuba" fez um chamado à uma "reconciliação entre catolicismo e comunismo" esclarecendo que este último "deve ser considerado como uma ideologia na qual o ateísmo de modo algum é substancial, mas constitui um acidente" "revista "Chrétiens de l'Est, Nº. 51, 3º Tr. 1986, supl. nº.11, pag. 33).

É na perspectiva desse longo processo de convergência comuno-católica que se entende que um líder comunista como Raúl Castro, sem deixar de ser comunista e perseguidor de cristãos autênticos, possa, ao mesmo tempo, chegar a "professar" uma "crença religiosa" que coincida com as metas do comunismo ou, pelo menos, que não se oponha a essa ideologia que é, em seu modo, uma religião satânica, de ódio a Deus e a seus mandamentos.

Então, a condição que está presente nas frases de Raúl Castro acima citadas, para que se concretize sua alegada "conversão" ("... se o Papa segue falando assim..."), suscita o maior estremecimento. Implicitamente, Castro diz que afirmações de Francisco, que ele se encarrega de ler e de comentar com seus sequazes, estariam indo ao encontro dos objetivos comunistas ou, pelo menos, não entrariam em contradição com eles. Castro estaria eventualmente disposto a retornar à "Igreja" que se apresente diante de seus olhos, e segundo seu modo de ver, como diametralmente contrária à doutrina da Igreja que chegou a declarar que o comunismo é "satânico" e "intrinsecamente perverso" (Pio XI, encíclica Divini Redemptoris).

Sobre a real situação de pressão e miséria em Cuba, recordo, aqui, valentes declarações "politicamente incorretas", do então núncio em Havana, monsenhor Bruno Musarò, pronunciadas no ano passado em sua região natal, e depois das quais, por coincidência ou não, foi retirado da nunciatura em Cuba e nomeado núncio no Egito: "O Estado controla tudo", e "a única esperança é fugir da ilha", explicou Musarò, descrevendo a situação de degradação, penúria e opressão dos cubanos; e concluiu dizendo que, inexplicavelmente, "até hoje, transcorrido mais de meio século, se continua falando da Revolução e a ela se exalta, enquanto as pessoas não têm trabalho e não sabem como fazer para dar de comer a seus próprios filhos (Lecce News, 28/08/2014).

Todos estes arrepiantes e estarrecedores fatos levantam as mais graves perguntas, não somente sobre o ditador Castro e seus sequazes, senão sobre as intenções de fundo da "ostpolitik" da diplomacia vaticana com relação ao comunismo cubano,seus objetivos e metas. Que se pretende? Até onde se vai? Onde se pretende chegar? Quais são as consequências, para a fé e a integridade da doutrina católica, dessas atitudes tão distintas do ensino tradicional da Igreja sobre o comunismo "satânico" e "intrinsecamente perverso"?

Não é por acaso que durante a realização do lamentável Encontro Nacional Eclesial Cubano de 1986, no qual o Episcopado cubano passou do diálogo e da colaboração rumo a uma coincidência com o comunismo e suas próprias metas socioeconômicas, o então arcebispo de Santiago de Cuba, monsenhor Pedro Meurice, chegou a reconhecer: "Nos consideravam uma Igreja de mártires e agora nos dizem que somos uma Igreja de traidores " (cf. "La voz Católica", arquidiocese de Miami, 14 de março de 1986).

Sobre a "ostpolitik" vaticana em relação ao regime castrista, no desterro cubano foram escritos livros descrevendo passo a passo esse lamentável processo. Dois desses livros, "Duas décadas de aproximação comuno-católica na ilha-presídio do Caribe" e "Cuba comunista depois da visita papal" se podem baixar gratuitamente em formato PDF, a partir dos links que se encontram imediatamente após este artigo. Eu mesmo tive a obrigação de consciência de escrever dezenas de artigos sobre o tema, de uma maneira ao mesmo tempo firme, mas documentada e respeitosa, exercendo um direito que todo leigo católico tem, porque a igreja não é uma prisão para as consciências de seus filhos. Também, depois deste artigo, se incluem alguns links para webistes que têm publicado boa parte de meus artigos sobre essa lamentável "ostpolitik" vaticana em relação a Cuba comunista.

O balanço do encontro de Francisco com o tirano é dramático para os cubanos que, dentro e fora da ilha, se opõem à ditadura castrista e anseiam pela liberdade de Cuba. O tirano Raúl Castro prometeu "converter-se" se continuasse vislumbrando coincidências, desde seu ponto de vista revolucionário, com discursos e comentários do pontífice Francisco. Enquanto isso, no sentido diametralmente contrário, recordo com emoção que o motivo de conversão de centenas de presos políticos cubanos, entre os quais me incluo, foi ouvir na sinistra prisão de La Cabaña, no início da revolução comunista, as heróicas exclamações dos jovens católicos que no "paredón" morriam gritando "Viva Cristo Rey! Abaixo o comunismo!". Isso aconteceu até que os comunistas, percebendo que o sangue dos mártires eram semente de novos cristãos, começaram a amordaçar os jovens que eram conduzidos ao "paredón". É o que narro em meu livro de memórias de 22 anos de cárcere. Não foi em vão que o intitulei "Contra toda esperança", recordando a frase cheia de fé de Abrahão, citada por São Paulo, e que não poderia ser mais atual para os cubanos amantes da liberdade: "Abrahão, havendo esperado contra toda esperança(...) não desfaleceu na Fé" (Epístola aos Romanos, 4-18 e 19).


Armando Valladares, escritor, pintor e poeta, passou 22 anos nos cárceres políticos de Cuba. É autor do best-seller "Contra toda esperança", no qual narra o horror das prisões castristas. Foi embaixador dos Estados Unidos ante a Comissão de Direitos Humanos da ONU sob as administrações Reagan e Bush. Recebeu a Medalha Presidencial do Cidadão e o Superior Award do Departamento de Estado. Escreveu inúmeros artigos sobre a colaboração eclesiástica com o comunismo cubano e sobre a "ostpolitik" vaticana em relação a Cuba.

Tradução para o português feita por Percival Puggina, escritor e membro da Academia Rio-Grandense de Letras.
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Links de libros y artículos sobre el tema, que se ofrecen gratuitamente:
¿Hasta cuándo las Américas tolerarán al dictador Castro? Dos décadas de progresivo acercamiento comuno-católico en la isla-presidio del Caribe – Cubanos Desterrados, Miami – Nueva York, 1990, 183 páginas (el libro analiza el documento final del Encuentro Nacional Eclesial Cubano y tiene una detallada cronología de apoyos de eclesiásticos de la isla y del mundo entero al régimen castrista).
http://www.cubdest.org/libros/hastacuando1990.pdf (tiene 21 megas, es normal que demore un poco en cargar) Cuba comunista después de la visita papal; libro editado por la Comisión de Estudios Por la Libertad de Cuba (1998), donde se comentan algunos aspectos de las alocuciones de S.S. Juan Pablo II en Cuba.
http://www.cubdest.org/libros/visitapapal1998.pdf
Siguen links de artículos sobre otras actitudes desconcertantes de Francisco:
Francisco, ecoterrorismo y miseria
http://www.cubdest.org/1506/c1505eco.htm
Armando Valladares: Eje Obama – Francisco. Cuba, prestidigitación y confusión http://www.cubdest.org/1506/c1501franciscoav.htm
Obama – Francisco: ¿rescate del pueblo cubano o de sus tiranos?
http://www.cubdest.org/1406/c1412obamacu.htm
Armando Valladares: Cuba, el nuncio y el “notición”
http://www.cubdest.org/1406/c1409nuncioav.htm
Armando Valladares: Francisco, pro-castristas y confusión http://www.cubdest.org/1406/c1408vallfrancisco.htm
Venezuela, Cuba y el anticapitalismo de Francisco http://www.cubdest.org/1406/c1401franciscopol.htm
El pontífice Francisco, marxistas "buenos" y caos mental http://www.cubdest.org/1306/c1312franccap.html
América latina: rehabilitaciones y anestesias http://www.cubdest.org/1306/c1310rehabilit.html
Armando Valladares: Francisco y el test cubano http://www.cubdest.org/1306/c1304franciscoav.html
Artículos anteriores de Armando Valladares sobre el mismo tema pueden leerse en el sitio web www.cubdest.org (se puede usar el Buscador para identificar temas y artículos).

 

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  • Enio Meneghetti
  • 14 Maio 2015

 

“É uma piada discutir se alguém contou ou não contou algo que publicaram em um livro!”


Acaba de ser lançado um livro sobre a passagem do ex-presidente uruguaio José Mujica pelo poder.

A obra traz a narração de uma conversa entre Lula e Mujica, onde o brasileiro teria confessado o crime do mensalão para o colega uruguaio.

A obra foi escrita pelos jornalistas Andrés Danza e Ernesto Tulbovitz, a partir de depoimentos de Pepe Mujica.

O registro de uma conversa acontecida no início de 2010, em Brasília, vem trazendo uma marolinha de confirmações e desmentidos.

Para início de conversa: até chegar a edição, um livro passa por inúmeras revisões. Jamais uma revelação desta importância, em uma obra sobre um ex presidente, estaria nela se autores e biografado não soubessem exatamente o que estavam dizendo e o impacto que causaria. É uma piada discutir se alguém contou ou não contou algo que publicaram em um livro!

Na conversa que o “afilhado” Mujica revela, Lula teria se referido às dificuldades da tarefa que desempenhava: “Neste mundo tive que lidar com muitas coisas imorais, chantagens”. E explicou: “Essa era a única forma de governar o Brasil”.

Segundo Mujica, o ex-vice-presidente uruguaio Danilo Astori também estava na sala e ouviu a declaração.

Andrés Danza, um dos autores do livro Una Oveja Negra al Poder – Uma Ovelha Negra no Poder, confirmou em entrevista a narrativa do ex-presidente uruguaio. E nem precisava, afinal, está escrita.

Segundo o autor, Mujica ouviu a afirmação. Ele estava com seu vice, Danilo Astori. Lula queixava-se que a corrupção é alta no Brasil e ensinava como, no caso dele, um presidente tem de lidar com questões imorais e chantagens.

Para Mujica ficou evidente que ele estava se referindo ao mensalão,embora Lula obviamente não tenha usado o termo. Afinal, a expressão foi criada por Roberto Jeferson ao denunciar o esquema em 2005 e usada comumente de forma pejorativa, tal qual“Petrolão”…

Ao relatar a conversa aos jornalistas que escreveram o livro, Mujica entendeu perfeitamente a confissão do escândalo que levou à prisão algumas das principais lideranças do PT e do governo Lula, como José Dirceu, José Genoino e João Paulo Cunha.

O autor do livro ainda esclareceu:

– Mujica se preocupa com a corrupção. Vive de forma humilde e a combate. Ele não a defende. Mas ele defende Lula, com quem tem uma relação muito próxima. Ele considera que Lula não é corrupto e o vê como padrinho. Ele entende que Lula teve de conviver com a corrupção.

Embora estejamos na fase do “não foi bem isso que ele quis dizer” e demais desmentidos, tentam tapar o sol com a peneira.

Mas fiquei bem curioso de saber em que consistiriam as tais “chantagens” que o padrinho possa ter sofrido.
Parece que há muito mais de onde tem vindo tanta lambança…
Mujica bem pode ceder-nos o título “Uma ovelha negra no poder” para uma versão do caso brasileiro.


 

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  • Olavo de Carvalho
  • 12 Maio 2015

O único partido da História que fomentou uma revolução contra si mesmo tem a obrigação de ser coerente e desaparecer do cenário o mais breve possível. Volto a explicar, agora ponto por ponto, a catástrofe estratégica monstruosa com que o PT destruiu a si mesmo e à nação.

1. No incipiente capitalismo brasileiro, as grandes empresas são quase sempre sócias do Estado, o único cliente que pode remunerá-las à altura dos serviços que prestam.

2. Por isso elas acabam se incorporando ao “estamento burocrático” de que falava Raymundo Faoro: o círculo dos “donos do poder”, que fazem da burocracia estatal o instrumento dócil dos seus interesses grupais, em vez da máquina administrativa impessoal e científica que ela é nas democracias normais.

3. Nesse sentido, o sistema econômico brasileiro não é capitalista nem socialista, mas sim patrimonialista, como destacaram, além do próprio Faoro, vários estudiosos de orientação liberal, entre os quais Ricardo Velez Rodriguez, Antonio Paim e o embaixador J. O. de Meira Penna.

4. Nos anos 70 do século passado os intelectuais de esquerda que sonhavam em formar um grande partido de massas tomaram conhecimento do livro de Raymundo Faoro, Os Donos do Poder. Formação do Patronato Político Brasileiro, então lançado em aumentadíssima segunda edição, e entenderam que o curso normal da revolução brasileira não deveria ser propriamente anticapitalista, mas antipatrimonialista: o ponto focal do combate já não seria propriamente “o capitalismo”, e sim – com nomes variados -- o “estamento burocrático”.

5. A definição do alvo era corretíssima, mas, ao mesmo tempo, o partido, como aliás toda a esquerda nacional, estava intoxicado de gramscismo e ansioso por tomar o poder por meio dos métodos do fundador do Partido Comunista Italiano, que preconizavam a infiltração generalizada e a “ocupação de espaços” destinadas a criar a “hegemonia”, isto é o controle do imaginário popular, da cultura, de modo a fazer do partido “o poder onipresente e invisível de um imperativo categórico, de um mandamento divino”.

6. A aplicação do esquema gramscista obteve mais sucesso no Brasil do que em qualquer outro país do mundo. Por volta dos anos 80, o modo comunopetista de pensar já havia se tornado tão habitual e quase natural entre as classes falantes no país, que os liberais e conservadores, inimigos potenciais dessa corrente, abdicaram de todo discurso próprio e, para se fazer entender, tinham de falar na linguagem do adversário, reforçando-lhe a hegemonia ideológica, mesmo quando obtinham sobre ele alguma modesta vitória eleitoral em troca. Entre os anos 90 e a década seguinte, toda política “de direita” havia desaparecido do cenário público, deixando o campo livre para a concorrência exclusiva entre frações da esquerda, separadas pela disputa de cargos apenas, sem nenhuma divergência séria no terreno ideológico ou mesmo estratégico.

7. O sucesso da operação produziu sem grandes dificuldades a vitória eleitoral de Lula numa eleição presidencial na qual, como ele próprio reconheceu, todos os candidatos eram de esquerda, o que canalizava os votos quase espontaneamente na direção daquele que personificasse o esquerdismo da maneira mais consagrada e mais típica.

8. Com Lula na Presidência, intensificou-se formidavelmente a “ocupação de espaços”, fortalecendo a hegemonia ao ponto de levar ao completo aparelhamento da máquina estatal pelo comando comunopetista, que ao mesmo tempo precisava da ajuda das grandes empresas para cumprir o compromisso assumido no Foro de São Paulo, coordenação estratégica da política comunista no continente, no sentido de amparar e salvar do naufrágio os regimes e movimentos comunistas moribundos espalhados por toda parte.

9. Inevitavelmente, assim, o próprio partido governante se transformou no “estamento burocrático” que ele havia jurado destruir. E, imbuído da fé cega nos altos propósitos que alegava, atribuiu-se em nome deles o direito de trapacear e roubar em escala incomparavelmente maior que a de todos os seus antecessores, sem admitir acima de si nenhuma autoridade moral à qual devesse prestar satisfações. O próprio sr. Lula expressou esse sentimento com candura admirável, afirmando-se o mais insuperavelmente honesto dos brasileiros, ao qual ninguém teria o direito de julgar – e isso no momento em que seu partido, abalado por uma tremenda sucessão de escândalos, já era conhecido no país todo como o partido-ladrão por excelência.

10. Assim, não apenas o PT fortaleceu o patrimonialismo, como frisou o cientista político Ricardo Velez Rodriguez, mas se transformou ele próprio na encarnação mais pura e aparentemente mais indestrutível do poder patrimonialista, soldando numa liga indissolúvel a ilimitada pretensão esquerdista ao monopólio da autoridade moral, os anseios do movimento comunista continental, os interesses de grandes grupos industriais e bancários, o aparato cultural amestrado (mídia, show business, universidades) e, last not least, o instinto de sobrevivência da classe política praticamente inteira.

11. Tal foi o resultado da síntese macabra que denominei faoro-gramscismo -- a tentativa de realizar por meio da estratégia de Antonio Gramsci a revolução antipatrimonialista preconizada por Raymundo Faoro: na medida em que, ao mesmo tempo, instigava o ódio popular ao “estamento burocrático” e, por meio da “ocupação de espaços”, se transfigurava ele próprio no inimigo odiado, personificando-o com traços repugnantes aumentados até o nível do absurdo e do inimaginável, o PT acabou por atrair contra si próprio, em escala ampliada, a hostilidade justa e compreensível da população aos “donos do poder”, aos príncipes coroados do Estado cleptocrático.

"NÓS ENCONTRAMOS O INIMIGO E ELE SOMOS NÓS", DIZ O PERSONAGEM POGO, CRIADO POR WALT KELLY(1913-1973)
12. Ao longo do processo, a “ocupação de espaços” reduziu o sistema de ensino e o conjunto das instituições de cultura a instrumentos para a formação da militância e a repressão ao livre debate de ideias, destruindo implacavelmente a alta cultura no país e, na mesma medida, estupidificando a opinião pública para desarmar sua capacidade crítica. Ao mesmo tempo, no desejo de agradar a vários “movimentos de minorias” enxertados no Brasil por organismos internacionais, o governo petista fez tudo o que podia para desmantelar o sistema dos valores mais caros à maioria da população, contribuindo para espalhar a confusão moral, a anomia e a criminalidade, esta última particularmente favorecida por legislações que não se inspiravam propriamente em Antonio Gramsci, mas numa fonte mais remota do pensamento esquerdista, a apologia do Lumpenproletariat como classe revolucionária, muito em voga nos anos 60 do século XX.
O Brasil que o PT criou é feio, miserável, repugnante, tormentoso e absolutamente insustentável. Cumprida a sua missão histórica de encarnar, personificar e amplificar o mal que denunciava, o único partido da História que fomentou uma revolução contra si mesmo tem a obrigação de ser coerente e desaparecer do cenário o mais breve possível.
Por isso a mensagem que o povo lhe envia nas ruas, nos panelaços, nas vaias e nas sondagens de opinião é hoje a mesma que, em circunstâncias muito menos deprimentes e muito menos alarmantes, surpreendeu o desastrado e atônito presidente João Goulart em 1964:
- Basta! Fora! 

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  • Eliane Cantanhêde
  • 12 Maio 2015


(Publicado originalmente no Estadão de 1/05/2015)

A aprovação da primeira fase do ajuste fiscal foi uma vitória do governo e dá um certo alívio para Dilma Rousseff, mas ainda falta passar pelo Senado e não se pode esquecer que esse ajuste é parte do desmanche de todo o primeiro mandato da presidente. Basta repassar as prioridades entre 2011 e 2014 para confirmar que não sobrou pedra sobre pedra.

Uma por uma, Dilma vem abandonando aquelas ideias que tirava da própria cabeça – não raro passando por cima da área técnica e da perplexidade do mercado – e anunciava com pompa e circunstância. Com o abandono e o desmanche, viram sucatas.

Nem o modelo de exploração do pré-sal resiste à realidade, apesar de Dilma ter feito carreira na área de energia e de ter ocupado, inclusive, o Ministério de Minas e Energia. Depois de tanta badalação, tanta aula com PowerPoint, tanta picardia contra o modelo tucano, o governo volta atrás, falando em deixar o sistema de partilha de lado para recuperar o de concessões, acabando com a obrigatoriedade de a combalida Petrobrás participar de todos os blocos.

Até o Pronatec, um dos carros-chefe dos debates, dos programas de TV e do dia a dia da campanha da reeleição, está devagar. Com a crise na economia, dissimulada no limite da irresponsabilidade, Dilma só conseguiu pagar os subsídios das entidades privadas até outubro, mês da eleição. Depois disso, atrasos, confusão, incerteza.

Outro que embalava o marketing dilmista era o Fies. Sem desprezar os objetivos corretos e as boas intenções, também encheu as burras de universidades de desempenho sofrível e brindou estudantes pobres com diplomas capazes de embelezar paredes, mas de serventia duvidosa para lhes garantir empregos em suas áreas. Em 2014, havia 4,4 milhões de bolsistas, com financiamento de R$ 13,4 bilhões para escolas privadas – boas ou arapucas. Sem dinheiro, muitos dos bolsistas e das escolas estão a ver navios.

E o financiamento da casa própria? É bem verdade que Dilma ainda viaja pelo País – quando não corre o risco de panelaços –, entregando milhares de unidades do Minha Casa Minha Vida, como fará na próxima terça-feira, no Rio. Mas, com o pior resultado da caderneta de poupança em 20 anos (20 anos!), lá se foi o crédito para moradia. A Caixa Econômica Federal limitou o financiamento de imóveis usados à metade do valor total e acaba de anunciar aumento dos juros da compra de casas.

Dilma estufou o peito num pronunciamento em cadeia de rádio e televisão porque tinha decidido na marra a redução da conta de luz para residências e empresas. Patrões, empregados e eleitores em geral bem sabem o que aconteceu depois da eleição. Ou melhor: o que vem acontecendo todo mês, quando a conta bate à porta e arromba o bolso.

Num outro pronunciamento oficial, a presidente se vangloriou da redução dos juros como nunca antes neste país e ainda estendeu um dedo ameaçador para os bancos privados, ordenando que eles fizessem o mesmo. E, afinal, onde foram parar os juros?

A venda de carros caiu 25,2%, no pior abril em oito anos. Mais de 250 lojas foram fechadas. Mais de 12 mil trabalhadores do setor foram para o olho da rua. E a indústria em geral? A produção industrial caiu 5,9% no primeiro trimestre de 2015. É mole?

O desastre afeta outro indicador importante, que ajudou muito o trabalho dos marqueteiros e foi importante para segurar o discurso e os votos da reeleição: o emprego. No entanto, segundo os dados oficiais, o desemprego já subiu para 7,9% no primeiro trimestre. Sabe-se lá onde isso vai parar.

Então, é ótimo que o ajuste fiscal comece a ser aprovado no Congresso e que novas perspectivas se abram para o País, mas não se pode esquecer que isso tudo é parte do desmanche que derrubou a popularidade de Dilma de quase 80% no início de 2013 para 13% em 2015. E agora, com o desmanche do primeiro mandato, a grande pergunta é: para construir o que no lugar?

 

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  • José Antônio Giusti Tavares
  • 11 Maio 2015


(Este site foi brindado com a divulgação, em pré-lançamento do livro, com o texto de introdução a "Democracia Totalitária: Natureza e Origens", em breve nas bancas). 

No subcontinente latinoamericano, o populismo revolucionário empenha-se em converter, com o apoio ativo de Cuba, democracias constitucionais e representativas aparentemente sólidas em democracias plebiscitárias, que funcionam na verdade como antessalas de democracias totalitárias.

A Venezuela vive hoje um momento de extrema gravidade: ao longo de dois anos do governo, Nicolás Maduro conduziu o país ao desabastecimento, à fome e, lamentavelmente, à violência anômica – não à guerra civil – pois se de um lado o regime não consegue sequer reter a imagem de uma ditadura estável, as aposições estão divididas e quase fraturadas. Recorrendo à imagem hobbesiana, a sociedade reduziu-se a uma espécie moderna de estado de natureza, onde a vida é incerta e violenta, e o ditador recorre ao velho chavão do imperialismo para culpar um inimigo externo pelo desastre da própria incompetência. Evidentemente, os governos protocomunistas da América Latina e, em particular, do Brasil, não silenciam; ao contrário, com a exceção recente do pronunciamento do Chanceler do Uruguai, apóiam claramente a ditadura. Nos dias que correm Bolívia e Equador são os exemplos mais evidentes, mas os menos evidentes, embora mais eminentes, são a Argentina e o Brasil. O governo de Cristina Kirchner, como se verá ao longo deste livro, é responsável pela ocultação do ato terrorista que, comandado pelo Irã, resultou na destruição do prédio da Associação Mutual Israelita em Buenos Aires e a morte de 85 pessoas que se encontravam no local, bem como, ulteriormente, pelo homicídio do Procurador da República Alberto Nisman, poucas horas antes do momento em documentaria a denúncia do duplo delito diante do Congresso do país.

Os presidentes Luiz Inácio da Silva e Dilma Roussef tentaram simplesmente, o primeiro nos últimos dias de seu segundo mandato e a última em 2014, transformar por decreto-lei a ordem constitucional brasileira, fundada na democracia representativa, em uma democracia plebiscitária, como se verá também neste livro: recuaram envergonhados diante das reações lúcidas e vigorosas da intelectualidade e de parte da classe política brasileira; mas os textos das tentativas ainda existem para documentar a vilania protocomunista. Lamentavelmente os cinco governos ora referidos ainda passam bem e parecem consolidar-se através de seus sucessivos desastres.

Este livro contém o primeiro intento de explicar as tendências, ideologias, movimentos, partidos, governos e mesmo regimes totalitários existentes no subcontinente latinoamericano, recorrendo à categoria específica da democracia totalitária, introduzida em 1945 pelo filósofo político francês Bertrand de Jouvenel no capítulo XIV de sua obra O Poder: História Natural de seu Crescimento e examinada na perspectiva da história da idéia pelo professor Jacob Loeb Talmon, da Universidade Hebraica de Jerusalém, em seu livro de 1951 As Origens da Democracia Totalitária, que inaugurou a sua trilogia clássica sobre o tema.

Concluiria aqui a Introdução. Contudo, este livro já se encontrava em momento final de edição quando a Revista Época divulgou a notícia, confirmada pelos órgãos oficiais da República, de que o Núcleo de Combate à Corrupção da Procuradoria da República no Distrito Federal indiciara e investigara o Ex-Presidente Luiz Inácio da Silva por tráfico internacional de influência associado ao tráfico de influência junto ao BNDS entre 2011 e 2014, em benefício da Odebrecht, empresa que apenas em 2014 recebera 848 milhões em operações de crédito para financiamento de obras públicas em Cuba, Venezuela, República Dominicana, Angola e Gana.

A contratação das obras obedecia a um padrão uniforme: a Odebrecht contratava o Ex-Presidente e Presidente do Instituto com o seu nome para proferir palestras naqueles países, paralelamente às quais o Ex-Presidente contatava com o Presidente do país visitado e, com a intimidade da cultura e da ideologia que possuíam em comum, acertava previamente o contrato de obras com a empresa brasileira, acenando com a garantia de financiamento do BNDES. A identidade entre Luiz Inácio e aqueles seus amigos pode ser avaliada pelo fato de que o presidente de Gana, John Dramani Mahama, lançou no Brasil em 2014 o seu livro sugestivamente intitulado Meu Primeiro Golpe de Estado.

A Procuradoria da República definiu em dois artigos do Código Penal os crimes pelos quais indigita o Ex-Presidente: 337, b e c – crimes por corrupção ativa e tráfico de influência em transação comercial internacional – , e 332, tráfico de influência contra a administração pública nacional.

Ao concluir essas páginas, informaram-me os jornais que o ex-presidente Mujica, do Uruguai, relatou em seu recente livro de memórias que o colega brasileiro lhe teria revelado que não fora possível governar o Brasil sem cometer atos imorais: trata-se da culminância do mau caráter, atribuir a própria perversidade ao povo que dela sofre as conseqüências.

Custou-me muito tempo até entender o sucesso político aparentemente imorredouro e a imunidade moral do ex-presidente. Ocorreu involuntariamente ao surgir-me à mente o personagem surreal e desconcertante do romance publicado em 1928 por Mário de Andrade: Macunaíma, que o autor definiu como o "herói sem nenhum caráter", retrato idealizado da esperteza do homem comum brasileiro. A imagem pode explicar muito bem a popularidade e a leniência de que desfrutava Luiz Inácio. Mas há uma diferença fundamental entre o personagem idealizado e o homem real que ainda parece governar o país e comandar um exército popular para defendê-lo do que deve às decisões da Justiça, há uma diferença entre a esperteza e o crime: o ex-presidente é um homem real embora não um homem comum; é um homem público nocivo, sem consciência moral.

A consciência moral dos criminosos clássicos é descrita pela história e pela literatura como ocupada pela tormenta da culpa sem fim. Imagino a consciência moral de Luis Inácio como uma lixeira vazia e sua história civil é a da corrupção, do crime e da impunidade permanentes. Quosque tandem abutere, Catilina, patientia nostra ? Até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência ? (Cícero, no Senado, denunciando o demagogo Catilina, que conspirava contra a República Romana, no século I a.C.).

* Cientista Político

                               

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  • Paulo Vasconcelos Jacobina
  • 11 Maio 2015

 

Há uma reforma política em curso, de iniciativa popular, liderada por uma certa “Coalizão pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas”, que conta com diversos apoios, inclusive da OAB, de ONGs sindicais e sexuais e de entidades religiosas, inclusive católicas e evangélicas.

Publicado originalmente em ZENIT.org

Uma pessoa, um voto. Este tem sido o princípio das democracias liberais. Não é o caso de discutir aqui se é um bom ou um mau princípio, mas apenas de lembrar a sua configuração histórica na teoria política. Com base neste princípio é que surgiram as principais leis eleitorais contemporâneas, e também por causa deste princípio surgiu uma outra tendência contemporânea: mais poderoso, numa sociedade, é aquele que, além do seu único voto pessoal, pode influenciar, determinar ou mesmo exigir do outro que vote desta ou daquela maneira. Esta pessoa torna-se um líder político.
Este princípio de “uma pessoa, um voto” não vale para as relações internas da Igreja Católica. Aqui, temos como fundamento de autoridade o amor de Deus, que nos revelou Sua face em Jesus Cristo e nos deixou uma fé a receber e um caminho a viver – uma moral. Tampouco entrarei aqui na questão espinhosa a respeito da especificidade da moral cristã frente às chamadas “éticas seculares” ou “laicais”. Há apenas duas coisas a dizer sobre isto agora: nós, católicos, sempre acreditamos que a razão prática retamente exercida jamais poderia chegar a verdades éticas diversas daquelas diretamente reveladas por Deus, porque Deus é, ao mesmo tempo, o autor da razão e o autor da fé. Então não temos o que temer de qualquer “ética secular” ou “laical”, porque acreditamos no poder da razão humana. A segunda coisa a dizer é que há, sem dúvida, uma especificidade da moral cristã sobre qualquer ética secular ou laica: trata-se da Graça de Deus que habita no cristão, e torna-lhe possível, e até mesmo alegremente desejável, reconhecer as verdadeiras normas éticas e obedecê-las. De qualquer modo, a própria moral evangélica reconhece que há um âmbito de discussão legítima, de opinião válida, quanto à gestão das coisas terrenas, no qual nenhuma autoridade, nem mesmo religiosa, pode impor suas opiniões aos fiéis, senão orientá-lo a pensar retamente.

Na estrutura da democracia, no interior de um estado de Direito, ter um voto significa poder expor seus próprios pontos de vista quanto à gestão das coisas temporais, e não somente votar de acordo com esse ponto de vista, mas poder influenciar os outros a fazê-lo, também. Mas uma característica contemporânea do jogo político tem modificado muito este quadro: a ideia de que as pessoas votam mal, de forma geral, e que isto decorre de que as pessoas não são suficientemente educadas porque de algum modo o “sistema” as oprime, as religiões as deturpam, o dinheiro as compram, os patrões as aterrorizam, os esposos as dominam, etc. Por outro lado, alguns políticos começam a justificar sua própria corrupção, sua própria roubalheira, como resultado de um sistema político injusto, em que os seus supostos “nobres ideais populares” o levam a ter que roubar muito dos cofres públicos para não ser derrotado pelos “reacionários desonestos” que são financiados pelo “capital” e pelos “grandes interesses internacionais”. Assim, começa a espraiar-se, pela sociedade, a ideia de que uma reforma política é necessária. Não estou falando em tese, aqui. Esta é, concretamente, a situação do Brasil, hoje.

A partir da noção de que uma reforma política é necessária, há dois caminhos:
1) Aquele de tentar simplificar e baratear as campanhas, trazer os candidatos para mais perto do povo, reforçar o poder das famílias e dos grupos sociais como religiões, escolas e universidades, permitir espaço para a verdadeira oposição de ideias, para que a vontade popular possa mais clara e maduramente expressar-se, e a responsabilidade dos políticos perante seus eleitores seja intensificada. Dá-se espaço para que setores sociais e econômicos possam influir legitimamente, inclusive de modo financeiro, sempre de maneira transparente e aberta, para que não haja abusos. Aqui, aposta-se na estabilidade das instituições sociais e políticas, e na necessidade de que os sistemas que estão funcionando bem sejam reforçados e aqueles que funcionam mal, corrigidos.

2) Há uma outra visão, porém; aquela de que as pessoas comuns simplesmente vão votar mal, qualquer que seja o sistema, a menos que se promova uma ruptura e se imponha à população aqueles valores que determinadas vanguardas já, de antemão, escolheram para o país, no pressuposto de que essas vanguardas sabem melhor do que nós o que é melhor para nós. Numa proposta de reforma política guiada por tal mentalidade, veremos a concentração de poderes nas mãos dos grandes partidos políticos – mormente naqueles que se apresentam com “bandeiras vanguardistas”, limitações radicais para o acesso a recurso financeiro por parte da oposição à ideias preconcebidas do “grupo de vanguarda” e a imposição, à população, de que vote num determinado candidato apenas porque tem determinado sexo ou “gênero”, para que se alcance uma “paridade” que não representa um espelho do que a sociedade pensa ou é, mas das tendências sexuais que a vanguarda pensante entende necessário impor para o “bem” do país. Vale mais, neste quadro, pertencer a um “gênero” ou “minoria militante” do que representar bem o pensamento dos respectivos eleitores. Inevitavelmente, uma vanguarda iluminada deste tipo proporá, em algum momento, uma “assembleia constituinte”, a pretexto de reforma política, para reformar todo o país à sua própria imagem e semelhança, naquilo que eles acham que são só verdadeiros “interesses populares”, como ocorreu, por exemplo, na Bolívia, na Venezuela e em outros países assim. Uma vez deflagrado um processo constituinte, a pretexto, por exemplo, de uma reforma política, nós sabemos que não há como limitar o Poder Constituinte a restringir-se a este assunto. O Poder Constituinte é, politicamente, soberano. Quem pensa assim quer forçar impacientemente o povo a experimentar à força sua própria utopia (quer dizer, a utopia da vanguarda, não a do povo), impaciente com o que imagina que é a incapacidade do próprio povo de escolher livremente o que é melhor para si, em razão daquilo que vê como “opressões internacionais, machistas, reacionárias, religiosas”, das quais apenas essa mesma vanguarda encontra-se livre, libertada, seja cientificamente pelo socialismo, seja teologicamente pela releitura revolucionária da tradição cristã.

Há uma reforma política em curso, de iniciativa popular, liderada por uma certa “Coalizão pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas”, que conta com diversos apoios, inclusive da OAB, de ONGs sindicais e sexuais e de entidades religiosas, inclusive católicas e evangélicas. Em algum momento, alguém pode pedir a sua assinatura para essa proposta. Ela se caracteriza pelos seguintes pontos:

1. De acordo com o art. 5º e parágrafos, você vai sofrer duas eleições para os cargos do legislativo. Na primeira, vai votar só numa legenda. Essa legenda, então, vai escolher os candidatos numa lista a partir do número de cargos a que tem direito, e você vai votar nessa lista, numa segunda vez. Ou seja, o raciocínio aqui é: “se temos um problema para financiar uma eleição, vamos fazer o seguinte: vamos fazer duas!”; também parte do raciocínio é: “se as eleições estão levando o povo a escolher mal, vamos fazer com que o povo delegue aos partidos o poder de escolher os representantes do povo através de listinhas internas”. Não precisa pensar muito para descobrir a mentalidade por trás dessas duas propostas – não parece ser o aumento do poder do eleitor, nem o barateamento das eleições.

2. As empresas, mesmo as microempresas, as pequenas e médias empresas realmente produtivas, que não recebem nada do Estado senão os boletos de cobrança de tributos e a visita de auditores fiscais para multá-las por não atenderem a cada vez mais complexa legislação tributária, serão proibidas de participar financeiramente de campanhas políticas, mesmo que não recebam nada do Estado nem pretendem receber. Isto sob o pretexto de que empresários e patrões são sempre maus e opressores, já que megaempresários corrompem políticos para obter recursos estatais ilícitos. Mas os sindicalistas e líderes religiosos, que controlarem multidões de pessoas físicas, poderão se valer de seus afiliados e fiéis para multiplicar pequenas doações privadas e multiplicar suas chances de se eleger. Isto aumenta muito, e progressivamente, se os candidatos forem de “gênero” sexual ou de “minorias oprimidas”, pois terão cada vez mais recursos para suas campanhas. São os art. 17A e 17B desse projeto.

3. Quanto maior for a bancada do partido no momento da eleição, mais dinheiro público ele receberá dos cofres públicos (ou seja, do dinheiro arrancado dos cidadãos por via de impostos, taxas e preços públicos), o que favorecerá a permanência progressiva e a perpetuação do grupo que se aboletar no poder num dado momento, com o dinheiro de todos, dificultando a renovação política e o eventual crescimento de uma oposição verdadeira. É o art. 18 deste projeto.
Agora é julgar, cada um com sua própria consciência, se este projeto vai na linha do aumento real de poder para o eleitor, ou se vai na linha do aumento de poder para a classe política, os partidos majoritários e a “militância de vanguarda”. E, como cada pessoa tem apenas um voto, decida livremente se vai assinar esse projeto. Mas não sem lê-lo com cuidado.

 

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